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Para conhecer uma pessoa: um ano de conversa vale menos que uma hora de brincadeiras

Você pode descobrir mais a respeito de uma pessoa numa hora de brincadeira do que num ano de conversa. – Platão

O que é a crítica?
Ir além da ideologia? Ver em paralaxe? Pensar além da dicotomia?

Algo bem difícil até de definir é o estado de atenção que deveríamos ter para não ficarmos aprisionados pela ilusão imposta pela colonização da mente.

Vivendo em sociedades totalitárias, dois artista oferecem suas possibilidades críticas e desaparecem por elas.

Abner Dean, nascido Abner Epstein (1910-1982) em Nova York, era um cartunista americano. Em situações alegóricas ou surrealistas, Dean frequentemente retratava extremos do comportamento humano em meio a situações sombrias, decadentes e urbanas ou paisagens áridas.

E. O. Plauen era o pseudônimo de Erich Ohser (1903-1944), um cartunista alemão mais conhecido por sua tira em quadrinhos Vater und Sohn (Pai e Filho).

Cartunista procura síntese para se expressar. E a síntese é bem problemática.
Lembro aqui que a síntese é um método que consiste em reunir elementos diferentes, concretos ou abstratos, e fundi-los num todo coerente.

Essa operação é extremamente complexa. É um treino para vislumbrar a mônada, a menor parte de um sistema. E uma vez encontrada essa mínima parte, tudo pode ser entendido, acrescentado, erigido, destruído.

A grande dificuldade em encontrar a mônada é que ela está dentro de nós, a peça elementar dos sistemas e poucos de nós ousam buscar o mal dentro.

Os cartunistas competentes em seu ofício parecem ser destemidos no mergulho dentro do próprio ser, escarafunchando os vínculos totalitários que os movem.

“Desenhando mãos”, de Escher pode nos servir para representar esse mergulho na profundidade que está oculta por nossos vincos sociais.

Pai e Filho é uma dupla de personagens e suas aventuras cotidianas – divertidos mal-entendidos, jogos e provocações -, que recriam um dos traços mais universais da infância: a cumplicidade amorosa entre um pai e um filho.

Publicada entre 1934 e 1937, foi um sucesso tão avassalador que o regime nazista incorporou aos proclames das Olimpíadas de Berlin de 1936.

A mudança de nome de seu criador de Erich para Plauen, sua cidade natal, deveu-se a seu recente passado como parte dos 3 Erich da Saxônia.

As brincadeiras de pai e filho ocultavam veias ainda abertas sob a pele aparentemente jocosa.

Erich Kästner, escritor e poeta, Erich Knauf, jornalista eram os outros dois que investiam pesado contra o emergente picareta megalomaníaco Adolf Hitler e seu Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães.

Quando assume o poder como chanceler e as perseguições implementadas, Erich muda o nome para Plauen e começa a publicar Pai e Filho.

Mas a aparente inocência da tira é um engodo. Todas as relações de poder serão demolidas durante os três anos em que explorou os limites institucionais com uma maestria de ourives.

Nunca antes os papeis destinados a reforçar as hierarquias social foram tão subversivos. Onde quer que você abra a obra muda de Plauen, pai e filho estarão divertidamente ironizando as arquiteturas totalitárias não só do presente deles, mas as próprias balizas que fundamentam a estrutura da família nuclear burguesa que foi expandida para todo mundo e até os dias de hoje marcam os modos das relações reanimadas pelos empoderamentos.

Cada sequência de quadros é um ataque ao modelo hierárquico e uma ode à tribo, ainda que reduzida a apenas dois. Mas é suficiente, acredite.

A compilação dessas tiras de jornal foram publicadas no Brasil em 2015 pela Editora Octavo e passaram modestamente ignoradas pelas ondas de publicações de quadrinhos de heróis dentre tantos outros.

O pai perde a sua autoridade e o filho perde a sua inocência e nessa isonomia surpreendente, a vida transcorre divertida e plena.

Essa sacada de Plauen é tão surpreendente que, recobertas por brincadeiras, provocações e mal-entendidos, até hoje se ocultam embaixo da pele as veias da insurgência e da rebeldia, sem que o leitor possa se precaver contra a crítica, engolindo como placebo a chave que poderia facilmente libertá-lo da prisão cartesiana da razão.

As duas últimas tiras da série demonstram o alcance da critica de Plauen.

Pai e filho caminham pela cidade e encontram bonecos deles próprios sendo vendidos, propaganda de ternos que supostamente recomendam, máscaras que as pessoas usam com seus rostos.

No quadro final dessa penúltima tira, sentados num banco de praça, ambos refletem sobre o fim e na última história, deixam na mesma praça um recado dizendo “até breve”. Se afastam pela estrada e volitam em direção à lua.

Algum tempo depois, os nazistas acusam seu criador de modo kafkiano e o condenam a morte. Antes do cumprimento da sentença, em 1944, Plauen se mata na prisão.

Abner Dean publicou seu primeiro livro em 1945. Clifton Fadiman, no prefácio, escreve: “Suas fotos são espelhos de truques nos quais avistamos aqueles fragmentos absurdos de nós mesmos que nunca vemos no vidro liso do hábito”.

O segundo livro de Dean, O que estou fazendo aqui? (1947) é o melhor e sua verve crítica é exemplar. Todos os personagens estão nus, recurso impressionante, sem dúvida e que cumpre uma função muito específica.

Em 1945, depois de mais de uma década como ilustrador comercial – desenhando anúncios e caricaturas para Life, Time, Esquire, Newsweek e muitas outras publicações – Abner Dean inventou um gênero próprio: poderíamos chamá-lo de Existential Gag Cartoon.

Ele usou o desenho elegante e o formato de painel único dos desenhos padrão da época, mas os transformou em um propósito mais profundo e estranho. Com uma mistura inimitável de sagacidade, seriedade e surrealismo enigmático, Dean usa essa forma mais efêmera para explorar os mistérios mais profundos da existência humana.

Esse segundo livro, talvez o melhor, retrata um mundo ao mesmo tempo estranho e familiar, no qual todos estão nus, mas agem como se estivessem vestidos – um mundo de passageiros empunhando clavas e invenções bizantinas, segredos, medos e satisfações perversas.

Através de todos os lugares, rastejando, flutuando, tropeçando, em busca de amor, felicidade e as respostas para as maiores questões da vida, seguem os seres nus numa atmosfera que na superfície pode conter enganos.

É o homem comum que surpreendentemente vemos nos quadros amplos que apenas enaltecem ainda mais a arte de Dean.

O uso de um homem comum também permite a Dean um dispositivo para contrapor o comportamento da humanidade em massa.

A obra está cheia de multidões de pessoas, geralmente na miséria – e quando não estão na miséria, é ainda pior.

Há esquadrões de pessoas nuas na rua, de cabeça baixa, sombrias. Alguns estão usando antolhos. Alguns carregam enormes pedregulhos equipados com alças, como se fossem pastas.

Bairros inteiros estão chorando abertamente enquanto cuidam de seus negócios, e é impossível dizer se há uma causa, ou se é alguma alucinação em massa com sua própria lógica auto reforçada.

As pessoas estão chorando porque estão tristes ou estão chorando porque todo mundo está chorando e elas querem se dar bem?

Qual seria a resposta mais deprimente?

Há multidões furiosas, multidões loucas – lutando entre si, correndo de penhascos como roedores. O que estou fazendo aqui? exibe um terror convulsivo de “homem de massa”.

Uma foto mostra um tumulto completo, com tijolos e garrafas salpicando o ar. Nosso homem comum navega pela cena, um olhar de despreocupação no rosto, montado em um monociclo alto que o coloca acima das trajetórias dos destroços da rua arremessados. O título: “O truque é… não se importar”.

Se no caso de Plauen as relações de pai e filho denunciavam uma sociedade totalitária e que podia ser subvertida com isonomia, aqui, em Abner Dean a totalidade inclui em suas garras cada vontade, cada aceitação, cada insanidade que prepara a multidão para a normose, a patologia da normalidade e cada um se adere nu à pele da realidade voluntariamente.

Embora produzidas para uma realidade específica num tempo muito preciso, as duas obras aqui apresentadas dialogam com nosso presente de um jeito perturbador, como se a pretensa evolução social não fosse mais que um engodo e todo desenvolvimento cumprisse seu protocolo mais assustador, acabando com toda possibilidade de envolvimento.

Antônio Nobre recentemente escreveu a síntese sobre o olhar crítico em termos que atualizam os dois cartunistas.

“A gente precisa tocar num quesito que muitas vezes é considerado piegas que é o amor. Amor é uma força do Universo que guia, processa e faz funcionar a natureza.

A leitura darwinista é parcial, é incompleta e equivocada, portanto, quando é aplicada em grande escala, porque na natureza funciona amor incondicional.

Eu já escutei o Ailton Krenak falando isso, escutei o Ernest Götsch e eu repito muito: o amor é a força da fusão, da união, da interação, desde uma célula eucariótica, que tem as mitocôndrias e os cloroplastos e foi um amor,

foi uma fusão. A nossa salvação como civilização só pode ser encontrada, chegada, sonhada se a gente cultivar o amor.

Estou falando isso porque com ciência somente tem se mostrado insuficiente. Há décadas a ciência usa a racionalidade para falar para a humanidade o que está errado, o que está certo, o que pode mudar, o que precisa fazer, sem consequências a não ser ir piorando e piorando.

O cérebro é uma boa ferramenta, mas não tem nenhuma personalidade. A gente precisa colocar alma, espírito, nas coisas que a gente faz, porque aí reside a solução”.

Eduardo Bonzatto é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) escritor e compositor

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