Observo em minha estante que dois títulos de Franz Kafka aparecem com algarismos fora da sequência.
As lombadas da coleção traduzida por Modesto Carone deveriam seguir de 1 a 9, mas o livro 1 ignora essa ordem — em seu lugar, fixa-se o volume 3. Ou seja: à dianteira, O processo, em vez de A metamorfose. E Carta ao pai separa-os aritmeticamente: 3; 2; 1.
Fico desassossegado em face da permuta, embora avalize a irregularidade numérica, consentindo que as páginas que encerram Josef K. devam figurar, na prateleira, antes das páginas que hospedam Gregor Samsa. Penso no destino desses heróis que…
Refreio o “quê” e o gatilho de um raciocínio devido a esta inusitada coincidência: Ficções, de Jorge Luis Borges, com tradução de Davi Arrigucci Jr., encontra-se em espaço impróprio.
Por algum incidente o livro teria se evadido do nicho que o abriga (não pense que os contos e a ensaística do argentino estejam em recanto próximo ao reservado aos seus compatrícios hispano-americanos – quem me dera possuir o senso pedagógico da organização).
Jorge Luis Borges fica na outra ponta da estante, afastado da literatura de García Márquez e Júlio Cortázar, entretanto colado à produção de Roland Barthes.
Aliás, da posição em que estou, enxergo amplamente uma capa barthesiana, vermelha, cujas letras pretas grafam com maiúsculas O RUMOR DA LÍNGUA.
Procuro uma justificativa para o porquê de a posição deslocada das brochuras e o baralhamento de dígitos desferir sentimento de estranheza sobre mim.
Talvez nem me ativesse a essa ocorrência, se meus irmãos e sobrinhos não nos fossem visitar – muita conversa e vinho durante a noite. É isto: o vinho amalgamou com as lombadas de Kafka, Borges e, de soslaio, Barthes.
Tão logo meus convidados se despedem, saindo pelo piso térreo de casa, onde fica a biblioteca; e depois de passar o cadeado na tranca interna da porta de madeira, avançar pela lateral da estante e finalmente contemplar os tais títulos refratários às suas posições de origem; e após meu malogro ao esboçar uma proposição acerca das duas narrativas kafkianas, rendo-me ao sofá e adormeço.
Gregor Samsa
Nesse estado, recupero Gregor e Josef K.. Revisito-os, ao regressar àquela manhã fatídica e sem igual de início do século XX, quando o caixeiro-viajante desperta metamorfoseado em seu aposento, no domicílio da família, e quando a outra personagem, em dormitório alugado de um pensionato – é dia do seu aniversário –, salta da cama e constata a presença de quatro homens, os autômatos porta-vozes da lei.
Imagens absurdas, em cadeia, se me impõem. O primeiro despropósito incide na entrada de Grete, a irmã de Gregor, na alcova de Josef K.: ela toca um violino, homenageando-o por completar 30 anos de idade.
-a de que os senhores, ali entre nós, eram sórdidos como os três inquilinos de seu pai, os barbudos. O quarteto confiava ao pobre bancário uma intimação judicial destituída de toda e qualquer legitimidade, exigindo-lhe a presença, domingo, no tribunal para a prestação de interrogatório.
Grete permanece em silêncio – talvez não tivesse ouvido minhas considerações. Os quatro homens, contudo, abandonam o local curvando suas cabeças mecanicamente em minha direção.
Reporto-me ao protagonista de Kafka que, sentado na beira da cama, olha a jovem com um interesse viril. Em minha inocência crítica, digo a ele: “Penso que O processo, escrito entre 1914 e 1915, possa constar como volume 1 de minha série.
Afinal, a injúria e a desgraça que desabam no senhor abrem terreno para a deflagração zoomórfica do irmão de Grete. Portanto Gregor deveria sucedê-lo”.
E, sem êxito na articulação, transmito de memória esta assertiva de Theodor Adorno, inscrita em “Anotações sobre Kafka” e enfeixada em Prismas: “Kafka procura com a lupa os vestígios de sujeira deixados pelos dedos do poder na edição suntuosa do livro da vida”.[i]
Quis aferir o Estado autocrático como aparelho opressor, determinante para os infortúnios do vendedor de tecidos e do funcionário do estabelecimento mercantil.
Ao término de minha fala, descobri que Grete não mais se encontrava no quarto – quem estava era a Sra. Grubach; e quem me ouvia, com as pernas cruzadas, era o ator Anthony Perkins do longa-metragem The Trial, dirigido por Orson Welles.
Tive vontade de lhe falar sobre a riqueza dessa adaptação e elogiá-lo efusivamente pela atuação em Psicose, no intuito de animá-lo a contar a respeito dos expedientes das filmagens e de Hitchcock. Dá-se que a cena onírica se modifica e a pergunta não se efetiva.
Domingo teria chegado e Josef K. palestra no salão do Tribunal de Justiça. Assim o vejo e, sem pedir licença, arremedo-o, gritando entre homens esquivos ao nosso discurso. Na multidão, eu imposto a voz e cito novamente o pensador da Escola de Frankfurt: “Não há sistema sem resíduo.
Contemplando-o, Kafka profecia o futuro”.[ii] Prossigo com Teodhor Adorno: “Sobre o espaço de Kafka pesa uma maldição: o sujeito fechado em si mesmo prende a respiração, como se não pudesse tocar aquilo que não é como ele mesmo”.[iii] Gratuitamente abandono Josef K. e saio à procura de Gregor.
Falta-me, no entanto, coragem para adentrar sua câmara escura em Praga. Temo o invólucro – tampouco quero inalar o rastro do homem-bicho; aterroriza-me a possibilidade de, no breu, sentir desprevenidamente a cola adesiva impregnada no assoalho e nas paredes.
É possível que esse nojo provenha da fabulação arraigada em mim de A paixão segundo G.H.; jamais esqueço o mal súbito da heroína de Clarice Lispector, a testemunhar: “Não, não fora desmaio. Fora mais uma vertigem”.
A narradora se recusa a “passar a mão pelos lábios e perceber vestígios”.[iv] Sim… o pavor da certeza de que experimentara o sumo da barata — o submundo, o calabouço.
Jorge Luis Borges
Um mosaico invade-me: quadriláteros retângulos triângulos losangos curvas galerias pinturas cavaletes Titorelli escadas corredores hexágonos estantes livros biblioteca babel Borges.
Abre-se uma porta e alcanço um quintal com varanda. A noite cai e o memorioso Irineu Funes – frágil, semblante singular – está nesse jardim à bruma.
Eu seria capaz de afirmar que alguém o acompanha. As plantas selvagens bloqueiam-me a visão, e a fumaça de um cigarro se eleva.
A personagem borgiana – proprietária de uma anomalia largamente enciclopédica – transfere-se em meu sonho para um recinto minúsculo.
Eis que me aparece estirada na cama. Nesse instante fico em dúvida se é de fato Josef K. o sujeito que estabelece certo diálogo com Funes; isso porque a aparência do protagonista de Kafka não mais corresponde à do indivíduo sobre quem recai a denúncia forense.
Por ironia, o homem, ali, é uma réplica de Ulrich Mühe, o ator alemão que incorporou o agrimensor K. no filme O castelo.
O espaço erige-se como um dos cubículos no qual o amante de Frieda, próximo ao desfecho do romance, cochicha com Bürgel em quarto destinado para o atendimento dos funcionários administrativos do castelo (vez ou outra despacham na cama).
Em tal episódio, K. apresenta-se profundamente exausto. Sentado na ponta da cama, é apanhado pelo sono e deixa a cabeça cair pouco a pouco, à medida que se encoraja para apreender o murmúrio do seu interlocutor.
Cambaleando, agarra “por acaso justamente o pé de Bürgel que saía debaixo do cobertor. Bürgel olhou para lá e deixou o pé para ele, por mais incômodo que isso pudesse ser”.[v]
Apenas nessa hora verifico que há um terceiro no quarto; rente à porta, com um caderno de notas e cigarro no canto da boca, está o autor de O rumor da língua.
Acho que lhe perguntei o que fazia ali. Como resposta, teria dito que se apropriava da conversação sussurrante entre a personagem de Borges e a do escritor judeu para recriá-la no romance que publicaria. Roland Barthes comportava-se à maneira de um voyeur.
À minha lembrança assoma-se este trecho introdutório do seu ensaio:
“O balbucio é uma mensagem duas vezes marcada: por uma parte, compreende-se mal; mas, por outra, com esforço, chega-se a compreender apesar de tudo; não está verdadeiramente nem na língua nem fora dela: é um ruído de linguagem comparável à sequência de barulhos pelos quais um motor dá a entender que está mal regulado (…).”[vi] Acordo.
Acordo com o som do motor de um carro. Meu filho o estaciona de frente ao portão e abre a garagem. Levanto-me do sofá e me recuso a pôr os livros 1 e 3 de Kafka na sucessão justa, e a levar Ficções à prateleira cabível.
Apago a luz da biblioteca e subo dois lances de escadas. Já passa da meia-noite. Está calor. Vou primeiramente ao quarto e visto um pijama curto. Minha esposa, no banheiro, remove a maquiagem; eu escovo os dentes.
Ela me repreende porque se deparou com minha toalha de banho fora do lugar, mas, em recompensa, diz que minhas havaianas novas combinam com a cor do meu calção. Sorrio e retorno ao quarto na esperança de recobrar meu sonho.
Ricardo Iannace é professor do programa de pós-graduação em Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa da FFLCH-USP. Autor, entre outros livros, de Murilo Rubião e as arquiteturas do fantástico (Edusp). [https://amzn.to/3sXgz77]
Notas
[i] Theodor W. Adorno, “Anotações sobre Kafka”. In: Prismas: crítica cultural e sociedade. Tradução: Augustin Wernet e Jorge M. B. de Andrade, São Paulo, Ática, 1998, p. 252.
[ii] Idem, p. 253.
[iii] Idem, ibidem, p. 259.
[iv] Clarice Lispector, A paixão segundo G.H., Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1964, p. 167.
[v] Franz Kafka, O castelo. Tradução: Modesto Carone. São Paulo, Companhia das Letras, 2017, p. 398-9.
[vi] Roland Barthes, “O rumor da língua”. In: O rumor da língua. Tradução: Mario Laranjeira. São Paulo, Brasiliense, 1988, p. 92.