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Upresidente, memórias de um doente de fascismo – carta II

Upresidente, memórias de um doente de fascismo – II

Carta ficcional sobre áudios de um suposto presidente que finge enlouquecer durante as eleições de um país real chamado Brasil

Eco abafado!

Começo neste instante o agora já dessa segunda carta…

Nada retorna a memória de algo que nunca mais existirá.

Fora da memória, sem futuro, esse agora fere a tela da minha pele queimada nos porões do inferno daquela sala onde nosso personagem – U( STRA ) Presidente – habita e morrerá!

Nestas Salas subterrâneas das cidades do mundo as pessoas vão ficando azuis azuis de tanta porrada secas de tamanha fome ossudas com os ossos na barriga de forma aguda! Se enxerga de longe! De perto o olho pode furar!

Abro os olhos, suspiro rápido num grito calado pelo pano amargo enfiado na minha boca. Acordo não sei em que tempo. Mordo o Pano Sujo Mastigado pelos meus dentes quebrados.

Sonho! Sinto em

 minha pele as metamorfoses do nosso tempo, sinto da superfície da pele até a carne abaixo, sinto os nervos e lá no fundo, mais abaixo ainda, sinto até os ossos, os ossos que tremem mudos e esquecidos na lagoa das torturas da história!

Com olhos semiabertos deitei até submergir de novo. Estava deixando de ser coisa para me tornar uma coisa da coisa – uma outra coisa mais monstruosa que o inseto que eu já era.Da Primeira mutação – de humano a inseto – agora estava me transformando de inseto a humano, demasiadamente humano, terrivelmente humano.

humano vem depois da coisa. O homem é uma coisa da coisa. Para os insetos, sempre fomos nós a aberração gigante assassina. E não era somente algo em mim que acontecia! Em todos, algo se passava, por dentro da carne do sentido.

É um sonho acordado, era tarde da noite, mais que meia noite, todas as raízes acordadas, subterraneamente secretas, cresciam de mim, pelas veias do corpo da Terra, eu abria os olhos dentro daquela hora da água, quando fantasmas desciam até nascerem por um buraco no meio de uma imagem de lama que me vê.

Fugi por uma fenda no alto do chão soterrado. Lembro que as cidades estavam submersas nas florestas, e as florestas nos corpos queimavam.

O presente come o passado, o verbo e as imagens se transformam na barriga aguda miséria. Até que muitos animais mortos renascem das construções dessas cidades.

Ouvi que eles falavam línguas humanas agora. Foi rápido demais, infinitamente imperceptível para dar tempo de traduzir – impossível, porque não tem tradução! Nós somos esses animais!

O contato entre duas superfícies se perdeu até que peles nasceram na cidade que me tocava os poros. Que me queimava os agoras.

Nesta carta vou conseguir esquecer tudo que ouvi? Não terei escapatória, preciso tirar essa memória de dentro de mim, cuspir, vomitar …

Acho que aqueles trechos censurados da primeira carta serão revelados aos poucos. Farei isso sem vocês notarem. Tudo que é censurado, se não for exposto, se transforma em ossos boiando nos lagos do passado que transbordam no presente.

Hoje de madrugada recebi novos áudios do #upresidente. Nem acabei de escrever sobre os primeiros áudios e já estou atingido no organismo por essas mensagens.

#upresidente disse: “é hora de fugir …minha garganta está viva habitada por vermes. Escute essa nova língua nascida da língua. É hora de multiplicar os fantasmas! Sou o profeta dos vermes da minha garganta. A Nova língua de Deus e do Capital. Cada Um por si, todos por mim…Torturar me faz gozar ”

Escutei até a metade as falas do #upresidente porque algo me interrompeu – corta – até esse exato segundo em que volto ao início de novo.

Essa segunda carta vai ser mais estranha. Tenho mais medo. O que não me impede de usar o medo contra o limite imposto. Defesa e fuga. Defesa e reação. Antes disso gostaria de partir ao meio a ideia e ir caminhar pela rua: correr para algum outro lugar longe do centro da cidade cinza.

Existe alguma cidade debaixo do chão? Meu corpo pode cortar o tempo. A continuação desses segundos é artificial naturalmente.

Faz um dia que interrompi a frase anterior. A matéria é atemporal em sua contínua interrupção. Nunca se volta ao mesmo lugar. Uma repetição precisa sair de si, se transformar no kaoz.

Hoje vou começar isso diretamente – tela a tela, pele a pele – porque existe um mundo que desaparece e enquanto vivemos é preciso ir para além dele.

E aconteceu novamente… algo voltou ao lugar que eu não sabia. Onde vocês se encontravam à espera da próxima mensagem?

… Não há tempo dentro da contagem. Conectados desconexos no labirinto… Não gostaria de ter que continuar essas cartas.

As intensidades são mais fortes do que eu, ao começar a escrever nunca sei o que vou frasear, em cada frase se abre um instante de metamorfoses imagéticas cujas palavras escapam delas mesmas. Frases se distorcem em imagens sem palavras.

Não quero ter que repetir nenhuma dessas palavras.

Malditos áudios. O número da “ PÁTRIA ARMADA ” tocou no meu celular às 4 da manhã. Ainda nem tinha conseguido dormir, acredito que não, não sei, o relógio do meu aparelho foi apagado.

Sufoquei sonolento de realidade a surdez histórica. Dessa vez engoli o cuspi e atendi trêmulo. Não falei nada, silêncio de 3 segundos…

Desliguei e joguei o celular na parede dando um grito incontrolável. O reflexo foi imediato. Rapidamente corri até o aparelho para ver se tinha quebrado completamente. Bem próximo dele com as mãos tomei um choque de repente!

O celular explodiu. Fui lançado para fora. Meu Corpo quebrou as janelas e os vidros que me cortaram na hora. Sangrava no ar. Era um explosivo paramilitar implantado no meu celular através daquela ligação.

Quando recuperei a consciência, me encontrei em um buraco na rua de minha casa. Ainda tentando repetir o reflexo do momento da explosão do celular, vi que minhas duas mãos tinham sido arrancadas.

Lembrei que Da Tela escorria um pus do vidro rachado quando o aparelho virou uma bomba… não era possível eu lembrar disso … a dor foi muito grande… como lembrei de um sonho sem nem saber que estava acordado agora?

Engoli o cuspi dessa vez, e trêmulo atendi em silêncio. Não falei nada, três segundos…e tudo se repetiu diferentemente do que foi.

Do outro lado alguém falou, antes de eu abrir os olhos, o celular estava nas minhas mãos:

“Upresidente fala Como se estivesse louco – saibam que é puro fingimento, porém de um jeito completamente imperceptível – ele sofre de normalidade compulsiva de dominação. Ele está criando vozes, mudando de tom, dando um nome diferente para cada voz nova. São mais de mil pessoas ! Ele não para de contar – 01 02 03 04 05 06 07… Já existem mais de 1000 personagens////////////.”

Ele desligou ou a ligação caiu?

Automaticamente no whats chegou os novos áudios. Meus ouvidos estão entupidos de Terra. Estou antes, depois e durante muito tempo em diferentes tempos acontecendo sem parar.

Um homem no caminho que segura uma arma olhou para mim de repente, eu fiz um sinal com uma pedra na mão. O reflexo paralisou seu corpo contra o meu. Me puxou contra si, me jogando no chão; pensando que ele ia pisar no meu pescoço, pedi desculpas gritando.

A arma dele era verde militar e amarela de ouro roubado da Terra. Tinha olhos azuis. Lambeu o cano da sua arma e me arrastou até o meio da rua. Enfiou o olho no meu. Gritou: meu presidente, agora vai morrer mais um traidor da pátria!

Foi apenas mais uma cena!

Ouvi o disparo, abri o olho, o teto do quarto estava tão escuro na noite que ainda não terminava que ontem era muito real. Eu vi sem me mover, estava dia, o sol apagou. O sonho me sugou sem escolha. Levantarei ou não?

Foi apenas mais uma cena?

Que sonho mais real, deve ter sido os vídeos que vi ontem. As imagens não cabendo em seu traço vão derretendo com o som do corte de um intervalo desconexo. Sinto agora, acontece na minha pele.

Não consigo mais ouvir o que não vi, apenas a minha pele em mim mesmo está reagindo; vibrações nas superfícies das peles não transmitem apenas o que se passa no interior do corpo, vão além, se transformam pelo contato direto com o exterior.

O mundo se sensibiliza pela pele na pele. Vocês já viram sua pele borbulhar por causa do ar em som?

Micro irrupções que desaparecem no instante em que a pele se dissolve. Ela forma para fora do seu limite uma borda viva…quente, fervente!

Estamos todos sensíveis a tudo que está acontecendo, não podemos mais ver nem ouvir – o que nos resta é a pele arrancada, marcada. Restou uma carne de contato, de calor e de frio, de dor e de prazer?

Corta! Corta um pedaço de mim?

Já é outro dia dentro do dia o sol esfola a pele E aquece a epiderme do mundo. Perdemos o lugar. Todo sentido cria um ninho, um lugar. As frases que escrevo que vou escrever não nasceram de mim, elas nascem pelo meio, entre um intervalo e um gesto, elas já estão vindo, nascendo de vocês.

Vou destacar algumas frases desconexas desse áudio colocando tudo fora de uma ordem linear. O que nos faria perceber coisas mais reais do que a mensagem expressa das frases.

Não há ilusão possível, nem saída do labirinto viável, não existe uma razão para onde se almeja retornar a ilusão, se tudo foi deflagrado, demasiadamente irracional desde o início.

Agora a rua está nua! Corro, fujo !!!

Nessa segunda carta, sinto que precisarei torcer minha própria língua, quebrar a sintaxe, deixar passar uma vertigem censurada pela ordem do discurso. Sair da ordem. Romper a Ordem!

O fato de eu acreditar que algumas coisas precisam ser ditas de uma maneira em que a língua não seja mais o limite de sua lei. Precisaria em cada carta fazer das palavras do meu pensamento uma metamorfose caótica.

É prazeroso, não acredito que isso seja apenas voluntário, apesar de eu tomar gosto pela ideia de metamorfosear meu pensamento em algo incontrolável; antes mesmo que a minha consciência viesse a descrever, é outra matéria sem palavra Que já se produziu em uma força plástica.

A linguagem, mesmo que serve a uma censura e a uma comunicação para uma função racional, está solta de sua sombra. A Pausa viva explode fora do tempo dos estilhaços das ordens.

O pesadelo começa quando acordamos. Sou uma coisa irreconhecível a coisa.

Durante o dia fugi das notícias, até que quando desapareci, começou mais uma vez o ritmo da monstruosa maquina arregalando seus olhos humanos contra o animal que sou – mastigado na boca da cara de crateras, me devora com sua fome abundante de mais energia.

Essa realidade estava me transformando em uma coisa… uma coisa … uma coisa sem humanidade, sem nome, de tão humana … via que alguém me olhava de perto por trás da imagem, esgotado e ao mesmo tempo ao contrário do que qualquer palavra possa criar, sentia as feridas do mundo , como se fossem minhas, para que eu saísse da coisa que me tornaram… não fui, se aceito, é porque me fizeram crer que sou eu a coisa de mim desejada … alucinação real, sensação estranha que era uma revelação divina da punição, milagre da culpa contra si, a gratificação que não tardia, mais que servidão voluntária, agonia desesperada controlada pelo medo de fugir … aquelas feridas eram os pecados da minha culpa … se escrevo é porque sei que não pode ser nada disso que afirmei… muito pelo contrário … eu sabia que a culpa não podia ser minha … quanto mais aquele rosto santo se aproximava mais as feridas se abriram… na minha mente vieram os rostos das pessoas que foram torturadas pelo golpe… a culpa não era minha…a culpa era deles…dos torturadores…a culpa é dos comandantes…

Vivendo na realidade aberta da vertigem, imaginava que era um sonho que estava tendo. Não era. Não é! É impossível que seja.

Não é realidade nem era sonho agora o Fluxo que escorre é mais forte que o fato do que foi vivido, eu mesmo um fluxo sanguíneo de uma veia estourada no cérebro eletrônico do capitalismo.

Virei a morte ao contrário do organismo que ocupo, vida contra a gênese eterna do organismo.

Como acabar de vez com isso?

Estou dentro, dentro do cérebro do capitalismo, e conspiro contra ele, é uma questão de vida ou de morte, e por isso conspiro por seu desaparecimento com todas as minhas forças, pelo menos o que restou dela.

Se fosse possível do futuro lançaria uma flecha contra seu passado. Mataria o capitalismo antes dele se coroar o novo imperador da Terra.

Meu corpo está rígido, paralisado diante da tela. Porosidade das camadas artificiais atiçam nossos nervos. Olhamos a tela – estamos olhando de dentro para fora – olhos olhando para a tela.

Prisão virtual de fantasmas que tem mais corpo do que o corpo real – porque afinal foram os fantasmas do eu que saíram do virtual para ocupar o real, e se apropriar dos nossos Corpos, nos destituir.

Estamos dentro do virtual observando um corpo oco na ilusão de um espelho que foi estilhaçado.

Não consigo retornar aos áudios que ouvi. A sensação do mundo é mais impressionantemente magnética. Tudo me afeta.

Nós somos águas vivas sem mar. O real último é a pele. Mas parece que nos arrancaram a pele porque o corpo vive na flor sem pele sua carne e nervos cujo mundo desapareceu e ainda está desaparecendo.

Erupção, olho as rachaduras dos prédios. Pássaros soterrados no concreto dos muros. Enfio a mão…

O movimento permanente da violência sai por todas as fendas abertas dos prédios. Dentro das salas subterrâneas da cidade, as feridas são tocadas e espremidas com imenso prazer do torturador.

Os fantasmas saem da história, abandonam, os virtuais saem do virtual, estouram as telas.

Uma fenda me sugou.

O Real é tão real quanto a dor causada pela lógica assassina dos comandos. A violência existe, fantasma que se incorpora, repetição que não para de retornar ao impulso forjado universal dos corpos que a exerce com paixão e fome.

Os ecos das palavras daqueles áudios não paravam de se multiplicar, cada frase minha aqui é atravessada por uma máquina de triturar; meu organismo transfigurado por tudo isso que aconteceu no Brasil mostra os órgãos.

Do lado de fora daqui tem muito ruído. Para ouvir as mensagens tive que colar o celular maquina no ouvido animal. Às vezes ao ouvir mais lentamente a voz Dupresidente tenho a sensação que ele está virando um animal.

Um animal humano. Um humano animal. Um monstro.

Sim, um monstro humano. A voz parece duas ao mesmo tempo. Grave e aguda, em menos de um segundo varia.

Mastiga o que fala. Corta as palavras no meio. Engole sílabas, dizendo outras no lugar. Emite sons que nunca ouvi na vida.

Quando vi a boca dele me mastigava dentro de um pesadelo acordado.

Sem ar em Manaus. Corro no meio do fogo na floresta. 80 tiros de ferro quente queima minha carne Numa vala preta no esgoto branco sem memória.

Mais uma cena …Até a próxima, se eu sobreviver, te passo outra mensagem …

Acabei de ver que os áudios do #upresidente não param de chegar!

Vou jogar o celular pela janela desse Castelo Europeu que onde me refugiei no Brasil para pelo menos escrever , escrever e não morrer …escrever com meus vermelhos o kaoz que de longe vejo chegando …daqui do alto que é mais fácil de observar… sinto que estou caído em direção a terra mais funda do corpo vivo…

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Pedro Paulo Rocha é poeta, filósofo, cineasta, artista transmídia e esquizo-analista.

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