Desde as eleições de 2022 tenho dado um tempo nas redes sociais. Cheguei a excluí-las do celular. Atualmente, configurei um temporizador que limita seu uso diário em 15 minutos. Tomei essa atitude pelo fato de que seu uso frequente estava me fazendo muito mal.
E a razão principal para o mal estar que sentia, relacionava-se fundamentalmente aos posicionamentos acerca não dos programas dos políticos na contenda eleitoral, mas sim em ataques pessoais. O debate centrou-se em quem era mais corrupto, quem roubava mais, quem mentia mais, etc., etc.
Ambos os candidatos alçados ao segundo turno em 2022 protagonizaram cenas no mínimo lamentáveis nos debates televisivos e nas mídias sociais. O candidato que restou vitorioso, focava nos feitos passados.
O derrotado, por sua vez, além do farto repertório de frases prontas já conhecidas de 2018, inovou com o ataque às instituições da República, contra os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e ao próprio processo eleitoral, inclusive ameaçando que, sem o voto impresso, não haveria eleições.
É preciso relembrar, igualmente, seus constantes ataques às urnas eletrônicas ao longo do seu mandato (2019-2022), bem como o inescrupuloso recurso à produção e divulgação de fake news, a mando do Palácio do Planalto, envolvendo blogueiros, youtubers e portais de notícias, cujo processo contava com financiamento de empresários bolsonaristas.
Não obstante o esvaziamento político e ideológico do último pleito, as circunstâncias que levaram ao meu desligamento das redes sociais estava muito mais relacionado ao posicionamento da maioria dos eleitores do vitorioso e à totalidade dos correligionários do derrotado.
Como dois lados da mesma moeda, atuavam, igualmente, como uma seita. Ao vencedor era impossível tecer críticas, pois estaríamos ajudando o candidato da direita. Aos deste último, era infrutífero qualquer recurso à verdade dos fatos, qualquer recurso ao uso da razão. Não havia argumento racional ou fato comprovado capaz de dissuadi-los.
Estamos em 2024, transcorrido já um ano do terceiro mandato de Lula. A dinâmica da conjuntura continua oportunizando-nos os mais descabidos posicionamentos acerca de todos os assuntos: genocídio palestino; invasão de terras indígenas; pedido de anistia aos golpistas do 8 de janeiro; relações políticas com presidentes da América Latina; etc.]
Mas, como disse, estou com acesso bastante limitado às redes sociais, território bastante fértil em bizarrices a respeito destes e outros temas, sobretudo, das ações e posicionamentos do governo Lula, que chegam até mim compartilhados por amigos ou colegas do trabalho, do grupo de pesquisa, por membros da família (cujo grupo me excluí em 2016, por conta do apoio de muitos familiares ao golpe), etc.
Como seres sociais e gregários que somos, não estamos livres do contato presencial com outras pessoas. Numa tarde ensolarada na capital paranaense, sentei-me para apreciar um pingado, matar tempo e ler um pouco.
Terminado meu café com leite, me dediquei à leitura ao mesmo tempo em que ouvia o balbucio da patroa com sua única empregada atrás do balcão.
O monólogo girava em torno de Bolsonaro. Não consegui ouvir direito qual era o tema específico. A única coisa que percebi foi que a patroa parecia indignada com um comentário feito por alguém que atribuía culpa ao ex-presidente por alguma situação que também não consegui identificar.
Ouvi apenas a senhora, trajada com o uniforme da cafeteria, mas claramente vestida como patroa, proferir: “Quis me dizer que a culpa era do Bolsonaro. Ele nem é mais presidente. A culpa é desse ladrão, corrupto, que tá aí. No governo Bolsonaro não houve corrupção!” Continuei firme na leitura do texto.
O homem ao meu lado, usando bermuda sarja, camiseta de banda punk, tênis de skatista, aparentando uns 40 anos, no entanto, não se conteve.
Ao chegar ao caixa, comentou educadamente que havia escutado o monólogo da patroa e que gostaria de expor uma contrariedade àquilo que acabara de ouvir, e emendou, sem que houvesse tempo para recusa:
“O que a senhora acha de alguém que compra 50 imóveis com dinheiro vivo? A senhora conseguiria comprar 50 imóveis com dinheiro vivo?” Ao que ela, visivelmente afrontada, retrucou com desdém: “Não sei. Quem sabe.”
“A família Bolsonaro conseguiu”, asseverou o inquiridor. A mulher rebateu a informação, indagando: “Cadê as provas?
Se ele roubou, deveria estar preso.” E seguiu com uma enxurrada de acusações ao presidente Lula, chamando-o de bandido, de ladrão, que deveria estar preso, que só está solto porque comprou o STF, etc. Já bastante injuriada, partiu para o ataque e perguntou o que Lula havia feito de bom até agora.
É necessário, aqui, uma pausa no relato. Acredito que o atrevimento do homem foi embalado pela alegação, por parte da senhora, de que não teria havido corrupção no governo Bolsonaro.
Demonstrou querer argumentar apenas a respeito desse fato. Ao ser afrontada, no entanto, a senhora logo se imbuiu do farto repertório bolsonarista de fake news, numa aparente tentativa de fazer aquele sujeito se calar ou cair em contradição.
A partir desse momento, a cada novo questionamento da mulher, o homem tentava contra-argumentar. Porém, as suas ponderações eram sempre respondidas com outras perguntas, sobre outros assuntos, porém, sempre focadas em atacar Lula com mentiras.
Para registrar com riqueza de detalhes o ocorrido, tentarei reproduzir parte do diálogo da forma como, obviamente, minha memória me permite. A começar por uma fala da senhora:
— Tá melhor agora? E o preço das coisas?
— O Brasil saiu da 12ª posição para a 9ª maior economia.
— Também, com o Lula roubando. Me diga o que melhorou
— O governo reajustou as bolsas de estudo; reajustou o salário mínimo que tinha ficado 4 anos congelado, o desemprego caiu, eu já consegui trocar de carro e de moto.
— Parabéns. Isso é você. Você é louco. É petista.
— Não sou pestista e muito menos ‘lulista’. Só não defendo assassino como o Bolsonaro, que matou 700 mil pessoas.
— Você defende ladrão. E o Lula que apoia o Hamas!. Tá atacando os judeus.
— Ele não apoiou o Hamas. Ele se posicionou contra a morte de mulheres e crianças pelos ataques de Israel.
Já bastante impaciente, o homem se acalmou e ponderou: “A senhora sabe quando foi criado o Estado de Israel? Ela ficou em silêncio, mas seu semblante denunciou a ignorância. O homem, então, continuou:
“Foi criado em 1947, depois do fim da Segunda Guerra Mundial. Foi criado no meio do território do povo palestino. Os palestinos já viviam naquela região muito antes da criação do Estado de Israel”. Por fim, questionou:
“O que a senhora faria se invadisse o seu país ou a sua casa e te expulsassem do lugar onde passou a vida toda?”
— Mas aqui já estão invadindo tudo por causa desse governo. E o apoio dele [Lula] ao Maduro, aquele ditador.
— A senhora se preocupa com os judeus, com os venezuelanos, vai na missa ao domingo rezar, provavelmente, mas na segunda defende o extermínio de um povo e o responsável pela morte de 700 mil pessoas, que durante toda a pandemia debochava das vítimas da Covid.
Como a senhora se sentiria ao contar para alguém que um familiar seu morreu de Covid e ela respondesse “Quer que faça o que, não sou coveiro”?
— Quem disse isso?
— Bolsonaro! E não só isso, disse “chega de frescura e mimimi, vão ficar chorando até quando”? Além de muitas outras coisas absurdas.
— Isso é montagem que fazem. Colocam a fala na boca dele.
Ouvindo a conversa, lembrei-me dos tempos ativos em minhas redes sociais, quando perdia tardes inteiras rebatendo bolsonaristas e denunciando postagens como mentirosas, propagadoras de discursos de ódio, racistas, homofóbicas, etc.
Mas, lembrei-me também, da última discussão que tive com um parente em um aplicativo de mensagem. Logo após o correto posicionamento de Lula a respeito do genocídio do povo palestino promovido pelo Estado de Israel, o sujeito me enviou um vídeo anexo à seguinte mensagem, destacada em letras garrafais e com problemas de pontuação:
“Mandem isso aos eleitores do Lula. Olha isso raça maldita que elegeu esse assassino, ele é a favor do Hamas e disso, será que vocês eleitores desse assassino gostariam de ter um fim assim? Malditos lulistas, malditos PTistas*!s.”
O vídeo faz referência a uma suposta atrocidade cometida por supostos membros do Hamas contra soldados supostamente israelitas.
O vídeo não tem autoria ou informações referentes a local, data, etc. Quando questionei a inverdade da mensagem em anexo, afirmando que Lula não defendeu o Hamas, mas sim o povo palestino, a resposta, a qual reproduzo como recebi, foi, no mínimo, surpreendente:
“Se ele foi, ele ajudou o Hamas com 25milhões, ele é Narcisista, e Aqui ele comanda, e apoia o PCC e o CV no Rio, foi ele que mandou deixar os dois presos fugirem de Mossoró.”
Sim, essa foi a resposta. Não tive outra reação a não ser retrucar: “Nossa!!! Que coisa, né!! Daria um ótimo filme de ficção!!!”
Cheio de razão, optou por continuar: “Fanfarrão, que quer transformar o Brasil em Comunismo, só que não vai conseguir, conseguiu se livrar da cadeia pq comprou todo mundo do Supremo, com o dinheiro que roubou do Brasil.”
Provocado pelas investidas incríveis (no sentido daquilo que não se crê e não no sentido de extraordinário), resolvi apelar para o bom senso e para a racionalidade.
Abordei a relação da família Bolsonaro com a milícia do Rio de Janeiro, da compra de imóveis com dinheiro vivo, do comportamento do ex-presidente durante a pandemia, da aproximação de Bolsonaro com o nazifascismo, inclusive compartilhei a imagem de Bolsonaro ao lado de um sujeito que se fantasia de Hitler e aproveitei para questionar:
“Se Lula poderia ser acusado de antissemitismo, por que Bolsonaro, não?”
Procurei encerrar a conversa relembrando ao meu interlocutor a fala dos Bolsonaros igualando professores a traficantes de drogas. Indaguei como ele poderia defender e apoiar alguém que fala isso, sendo que na nossa família havia, e ainda há, professores e professoras.
As duas situações aqui narradas evidenciam um grave problema: a dificuldade que os setores progressistas e da esquerda, mas também o governo, têm de furar a bolha na qual vivem essas pessoas que convencionamos denominar de bolsonaristas.
O comportamento é sempre o mesmo. Não respondem quando questionados sobre as ações de Bolsonaro. Revidam com outra pergunta, sobre outro assunto.
Além disso, não lhes importa o que Bolsonaro tenha feito, para o bem ou para o mal. Não lhes importa quais medidas o ex-presidente tomou ou deixou de tomar. Interessa-lhes o que o Lula fez, faz, ou deixou de fazer.
O meu interlocutor na região Centro-Oeste do país, reproduziu as mesmas falas da dona da cafeteria aqui em Curitiba.
A rede de fake news, financiada por empresários e parlamentares, continua fabricando e disseminando uma visão paralela da realidade, a qual esses sujeitos aceitam como uma verdade inquestionável.
A verdade é aquilo que eles acreditam, independentemente dos fatos, dos dados, da ciência. Nem a foto de Bolsonaro abraçado a um sósia de Hitler é suficiente para dissuadi-los.
O ato do dia 25 de fevereiro, na Avenida Paulista, demonstrou que Bolsonaro não só tem muito apoio como, também, grande capacidade de mobilização,
impulsionada pelas igrejas e por setores da burguesia. Essa força não pode ser menosprezada e muito menos deixada livre para ser combatida às vésperas da próxima eleição presidencial.
O bolsonarismo já está em plena campanha para 2026, disputando todas as esferas da sociedade. O ano passado foram os conselhos tutelares. Neste ano, serão as eleições municipais. Em 2025, serão as eleições presidências da Câmara Federal e do Senado. Aqueles que hoje posam com aliados de Lula, podem, a partir de 2025, fortalecer a oposição.
A possibilidade de virar o jogo está na urgente adoção de medidas que fortaleçam o controle social das instituições políticas, vinculadas a um projeto de mudanças estruturais na própria representação política, no acesso à terra e à moradia, ao trabalho regulamentado, na reversão do desmonte da seguridade social, na desmilitarização das polícias militares e na laicização das forças de segurança em todos níveis.
Fundamentalmente, é urgente a vinculação das demandas mais sentidas do povo pobre e trabalhador a um projeto de superação das condições que perpetuam as desigualdades.
Aqueles que questionam ou mesmo se opõem às mobilizações que começam a pulular aqui e acolá, encontram-se, parece, frente a um dilema:
Levar as massas a tomar as ruas e tensionar a disputa política, correndo o risco de impulsionar mobilizações da direita e da extrema-direita, ou, apostar no imobilismo como forma de distender a correlação de forças, investindo tudo nas eleições de 2026?
Trata-se de um falso dilema. Ausentar-se da disputa política, deixando o campo de batalha livre para a direita e a extrema-direita, fará com que a única voz ouvida nas e das ruas seja justamente as vozes daqueles que têm, até aqui, não só logrado êxito em suas pautas, mas, sobretudo, convencido as pessoas de que suas pautas representam o interesse de todos, por mais reacionárias, individualistas e meritocráticas que sejam.
A conjuntura pode até não ser favorável.
Tampouco nosso imobilismo a tornará.
Rossano Rafaelle Sczip