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Ícone da Bossa Nova e do jazz, o multi-instrumentista João Donato morre aos 88 anos

Na madrugada desta segunda-feira (17), exatamente um mês antes de completar 89 anos, um dos grandes nomes da música popular brasileira morreu no Rio de Janeiro.

O multi-instrumentista, cantor, compositor e arranjador, um dos precursores da Bossa Nova, teve uma infecção nos pulmões e uma série de outros problemas de saúde daí decorrentes. A sua partida acontece em período em que o músico seguia em plena atividade.

Em setembro, Donato se apresentaria ao lado do sambista Martinho da Vila no festival Coala, em São Paulo. Também estava às voltas com shows dos dois álbuns mais recentes que lançou – um deles, Serotonina, o primeiro de inéditas dos últimos 20 anos.

Com carreira musical iniciada no fim dos anos 1940, João Donato integrou a escola musical que criaria a Bossa Nova e se tornou uma das referências nacionais do jazz. É tido como um dos responsáveis pelo espraiamento da música popular brasileira pelo mundo.

Tendo dedicado 74 dos seus 88 anos de vida à música profissional, Donato carregava na bagagem mais de 500 composições. Foram algumas dessas, gravadas em cerca de mil fitas e registradas em manuscritos, que o produtor Ronaldo Evangelista se dedicou a ouvir no apartamento de Donato, para ajudar a selecionar o que seria o último disco do mestre.

A música como “serotonização” da vida

Lançado nas plataformas digitais em agosto de 2022 e em vinil neste ano, Serotonina tem participações da cantora Céu, da forrozeira Anastácia e letras dos músicos Rodrigo Amarante, Maurício Pereira, Felipe Cordeiro e dos poetas Jorge Andrade e arrudA.

O nome do disco se refere ao neurotransmissor que ficou popularmente conhecido como aquele que traz felicidade.

A serotonina, como uma mensageira que equilibra sinais entre as células do sistema nervoso e de outras partes do corpo, é capaz de produzir sensações de bem-estar. Para João Donato, é também o que faz a música.

“Uma boa música pode trazer tanto prazer que é como uma dose de serotonina pura, 10 ml, na veia, de manhã e em jejum! Então, o importante é tocar músicas que tragam essa ‘serotonização’ para ouvir e se encharcar de prazer.

Se você for na farmácia e perguntar se vende felicidade, vão te responder: não. Mas se você ouvir esse disco, é uma receita para felicidade sem contraindicação”, Donato chegou a dizer em entrevista à Folha de S. Paulo.

Pelados, com meias coloridas e cobrindo as partes íntimas com folhas grandes de um lírio.

É assim que Donato e Jards Macalé aparecem na capa despojada que estampou o álbum conjunto, lançado em 2021. Selada durante a pandemia, a parceria dos amigos e admiradores de Tom Jobim e João Gilberto fez surgir o Síntese de Lance, penúltimo disco de Donato.

Ele sintetizou o encontro com Macalé como uma “aventurança”. O nome do trabalho é também o de uma de suas músicas, feita com Marlon Sette e inspirada em um tema popular relacionado às religiões afro-diaspóricas.

“A música é invisível, você ouve ela, mas não sabe onde ela está. Não tem como pegar, nem guardar”, definiu Donato ao Correio Braziliense: “É uma coisa que penetra, que atravessa gente. A música atinge a alma e enobrece o espírito”.

Tudo isso vem, tudo isso vai

João Donato nasceu em 1934 em Rio Branco, no Acre. Desde menino, assoprando flautinhas de bambu ou batucando em panelas, teve a música como parte da sua essência.

Quando tinha oito anos, ganhou um acordeon e aos 15 já tocava no programa Manhãs na roça, de Zé do Norte.

No Rio de Janeiro, para onde se mudou com a família em 1945, começou a estudar piano. Ali fez amizade com os músicos Lúcio Alves, Nanai e Chicão da banda Namorados da Lua. Em 1953 formou seu próprio grupo, Donato e Seu Conjunto.

Em 1956, quando se mudou para São Paulo, onde tocaria piano com Os Copacabanas e a Orquestra de Luís Cesar, gravou seu primeiro LP. Chá Dançante, produzido por Tom Jobim, apresentou abordagens instrumentais de canções de Ary Barroso, Luiz Gonzaga e Dorival Caymmi.

Os acordes modernos do acordeon de Donato já eram um embrião do movimento da Bossa Nova.

Mas foi o álbum Quem é quem, que veio a público em 1973, já depois de uma passagem de três anos pelos Estados Unidos, que deu a Donato a visibilidade que lhe acompanharia por toda a vida. Entre os letristas deste trabalho estão Paulo Cesar Pinheiro, Geraldo Carneiro e Lysias Ênio, o seu irmão.

Em uma entrevista que deu à CBN no início de 2023 a respeito do último dos seus 38 álbuns, Donato comentou que gostava sempre de registrar, nem que fosse um pedaço, melodias que ouvia ou que lhe vinham à cabeça.

Uma vez, num fim de tarde na beira de um rio no Acre, se encantou pelo assobio de um homem que passava de canoa. “Ficou na minha lembrança até hoje.

Acho muito bonito o efeito que a música pode causar nas pessoas. Um efeito balsámico, uma coisa pacífica, calmante”, descreveu o ícone da MPB. A música, disse João Donato, tem essa coisa de “tirar um pouco o medo”.

A melodia assobiada pelo canoeiro virou um dos clássicos de dois dos gigantes da cultura brasileira. Donato musicou e pediu que Gilberto Gil botasse a letra da canção que levaria o nome de Lugar comum.

“Beira do mar, lugar comum / começo do caminhar / pra beira de outro lugar. / À beira do mar, todo mar é um / começo do caminhar / pra dentro do fundo azul”.

Na manhã desta segunda-feira (17), o Brasil recebeu a notícia de que o gênio do jazz e da Bossa Nova, depois de tanto que deu à música brasileira, voltou, como “tudo isso vem, tudo isso vai”, “pro mesmo lugar de onde tudo sai”.

Gabriela Moncau

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