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Ministério da Agricultura descumpre lei e barra ida de servidores para Desenvolvimento Agrário

Plenário do Senado Federal durante sessão deliberativa ordinária semipresencial. Ordem do dia. Na pauta, a proposta de emenda à Constituição que viabiliza pagamento do piso da enfermagem (PEC 42/2022). Em pronunciamento, à bancada, senador Carlos Fávaro (PSD-MT). Foto: Roque de Sá/Agência Senado

 Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa), chefiado pelo agropecuarista Carlos Fávaro, está dificultando a transferência de Auditores Fiscais Federais Agropecuários (AFFA) para o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar (MDA), segundo relatos de servidores e ofícios e despachos trocados entre as pastas, aos quais o Brasil de Fato teve acesso.

Pelo menos 25 servidores do Mapa pediram transferência para o MDA após publicação da Medida Provisória (MP) 1.154, de janeiro de 2023, que estabelece a organização básica dos órgãos da Presidência da República e dos Ministérios.

A norma prevê a possibilidade de servidores federais se candidatarem a cargos vagos nos novos ministérios criados pela gestão Lula até o dia 30 de junho. Até agora, somente um deles conseguiu efetivar a transferência.

A MP, que foi aprovada pelo Congresso e virou lei no dia 1º de junho, estabelece que o Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) deve definir os critérios, limites e parâmetros para as requisições. Na portaria 136 de fevereiro deste ano, o MGI define que esses pedidos não são passíveis de recusa.

Além disso, o processo de requisição deve ter obrigatoriamente prioridade sobre os demais processos de movimentação de agentes públicos e que os funcionários devem entrar em exercício no prazo máximo de trinta dias corridos, contados da data da entrada do processo de requisição.

A despeito da medida provisória e dos ofícios em que o ministro Paulo Teixeira reitera as requisições, relatos e documentos mostram que chefes da estrutura do Mapa estão emitindo pareceres contrários aos pedidos.

O secretário-executivo do ministério, Irajá Lacerda, chegou a enviar um ofício ao ministro do MDA solicitando uma reconsideração das solicitações. Além dos pareceres contrários, as requisições ficam presas nas diversas esferas da estrutura da pasta, dificultando a transferência.

Relatos

Guilherme Coda, um dos 25 funcionários do Mapa que demonstraram interesse pela transferência, afirma que o chefe imediato do servidor requisitado precisa apenas ser notificado dentro do processo simplificado. Mas, em vez disso, “os chefes estão fazendo parecer contrário. Os processos estão dando voltas dentro do Ministério da Agricultura”.

Segundo a Portaria 136 do Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos (MGI) de fevereiro deste ano, “o processo de requisição deverá ser simplificado, dispensadas consultas internas ou exigência de apresentação de documentos complementares a respeito do agente público pelo órgão ou entidade requisitada”.

A pasta é responsável pelas definições dos critérios, limites e parâmetros para as requisições, conforme a MP 1.154.

De acordo com esta portaria, o processo tramita da seguinte maneira: o funcionário público da administração federal demonstra interesse ao MDA pela transferência.

Em seguida, o ministro Paulo Teixeira solicita a requisição ao Mapa, que, por sua vez, encaminha a notificação para o chefe do servidor em questão e para a área de pessoal responsável por disponibilizar o trabalhador.

Depois, o secretário-executivo da pasta assina uma portaria a fim de oficializar a disponibilização do servidor no Diário Oficial da União (DOU).

No entanto, “o que aconteceu foi que servidores do Mapa apresentaram interesse em voltar para o MDA. O ministro [Paulo Teixeira] fez essa requisição, mas o Mapa não está aceitando”, afirma Coda.

O Brasil de Fato conversou com outros cinco servidores que preferiram não se identificar, uma vez que ainda aguardam a finalização da transferência para o MDA.

Um deles está com o processo parado desde o final de março. “Está indo de departamento em departamento e não devolvem para o MDA.”

Outro servidor, cuja requisição foi iniciada em 20 de abril, afirma que seu processo “ficou parado um mês no Departamento de Gestão da Secretaria de Defesa Agropecuária (SDA/Mapa).

Agora saiu um parecer sem fundamento falando que a carreira que eu ocupo de AFFA não é adequada para servir no MDA”.

Um terceiro servidor já viu o seu processo passar por pelo menos nove instâncias do Ministério da Agricultura. Ainda assim, após ter manifestado interesse pela transferência, há pouco mais de 60 dias, a sua requisição não foi finalizada.

“Se uma requisição de ministros de Estado com prerrogativa de Presidência da República não é obedecida, o que sobra no ordenamento da administração pública federal, no âmbito do Poder Executivo e sua autoridade?

Em que segurança jurídica administrativa nós passamos a estar?

A administração pública tem que se pautar por princípios. O Ministério da Agricultura vai funcionar à margem disso?”, questiona o servidor.

Entre os outros dois servidores, um iniciou o processo em 4 de abril e até o momento não foi concluído. A requisição do último servidor chegou a ser reiterada pelo ministro Paulo Teixeira mais de uma vez, inclusive após o secretário-executivo do Mapa, Irajá Lacerda, solicitar uma reconsideração da transferência.

À resistência para transferir os funcionários públicos, somam-se os relatos de assédios sofridos pelos trabalhadores que requisitaram o deslocamento do Mapa para o MDA.

Segundo Guilherme Coda, esse processo “acaba causando pressão sobre o servidor e, em alguns casos, temos AFFAs sofrendo pressão de suas chefias e se tornando motivo de chacota entre colegas”.

O auditor afirma que “aqueles que estão tentando sair acabam sofrendo assédio e pressão dos chefes, havendo perseguição.

Isso impede que novas pessoas se apresentem, pois ficam com medo de enviar um e-mail ou se manifestar, com receio de se tornarem alvos de chacota ou sofrerem perseguição”.

Os funcionários pretendem entrar com um pedido de liminar na Justiça a fim de garantir que as transferências sejam concretizadas antes de 30 de junho, que é a data limite para serem feitas as requisições de acordo com a medida provisória.

Pareceres contrários

Entre os pareceres contrários às requisições, está o do secretário adjunto de Defesa Agropecuária, Marcio Rezende Evaristo Carlos, emitido nesta última terça-feira (13).

No documento, o secretário afirma que “o perfil de atuação de servidores no MDA estaria mais relacionado a profissionais da carreira ATPS [Analista Técnico de Políticas Sociais] e que a retirada do AFFA do Mapa comprometerá as ações das Defesa Agropecuária”.

Anteriormente, em 7 de junho, a diretora do Departamento de Gestão Corporativa, Estela Alves Medeiros, já havia publicado um despacho encaminhado ao Gabinete da Secretaria de Defesa Agropecuária, com a mesma justificativa.

“Tendo em vista que as atribuições do Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar se relacionam principalmente ao Fomento da Atividade Agrícola, entendemos que o perfil de atuação naquele Ministério seja de profissionais da carreira de Analista Técnico de Políticas Sociais – ATPS. A retirada do AFFA do Ministério da Agricultura e Pecuária comprometerá as ações da Defesa Agropecuária”, escreveu Medeiros no documento.

“Na verdade, os chefes das áreas técnicas até podem emitir um parecer informando que a ausência do servidor causará prejuízos aos serviços, porém esse parecer deve servir apenas como confirmação da ciência da chefia imediata no processo e o mesmo encaminhado para a área administrativa responsável pela disponibilização do servidor.

Os processos estão ficando retidos na área técnica e o processo administrativo não está seguindo adiante”, afirma Guilherme Coda.

Em um documento interno que circula entre os auditores que iniciaram o processo, os funcionários lembram que quando as atribuições do MDA se encontravam na estrutura do Mapa, havia auditores exercendo “as suas funções em atividades inerentes a este Ministério.

Com a reestruturação do MDA estes servidores AFFAs foram realocados nas diversas Secretarias do Mapa”. Portanto, não haveria motivos para esses auditores não serem disponibilizados para exercerem atribuições similares em outro ministério.

“A carreira de AFFA foi concebida e instituída para servir em todas as diversas áreas e desdobramentos institucionais da agropecuária, incluindo o fomento, como forma especial de promover, estimular e preparar os produtores e empresas rurais ao profissionalismo exigido para alcançar uma produção sustentável, com qualidade ampla e cumprir o estabelecido na legislação agropecuária”, afirmam.

Boicote ao MDA

Todos os servidores que relataram a situação dentro do Mapa ao Brasil de Fato acreditam que há uma orientação para que os processos sejam represados.

O Ministério da Agricultura e Pecuária argumenta que existe um déficit de servidor na área, que é decorrente da ausência de concursos públicos.

O último exame para ingresso de servidores ocorreu em 2017, organizado pela extinta banca Escola de Administração Fazendária (Esaf).

Na ocasião, foram ofertadas 300 vagas de nível superior para o cargo de Auditor Fiscal Federal Agropecuário, na especialidade de Médico Veterinário.

“De fato, existe um déficit no quadro de servidores públicos federais no Brasil. A gente ficou por um período sem concurso no governo Bolsonaro. Mas de 2.600 Auditores Fiscais Federais Agropecuários que estão na ativa no Mapa em todo o Brasil, apenas 25 demonstraram interesse em ir para o MDA”, afirma Guilherme Coda. O número representa menos de 1% do efetivo total de funcionários.

Os funcionários suspeitam que existe a intenção de dificultar a estruturação de políticas públicas voltadas para a agricultura familiar.

“O Mapa está bem voltado aos interesses dos ruralistas, e o MDA mais ligado à questão da agricultura familiar. O agronegócio tem muito poder no Mapa. Os ministros do Mapa historicamente são ligados ao agronegócio.

Uma questão central é que os cargos não mudaram no atual governo. Mudou o ministro e o secretário-executivo, só que a estrutura ainda é de bolsonaristas.

Então, é possível que estejam dificultando de forma intencional para boicotar mesmo o governo federal”, defende Coda, endossado por seus colegas.

O objetivo se somaria às políticas estabelecidas ainda durante o governo Bolsonaro que visaram favorecer ruralistas, como o decreto que permitiu a terceirização da supervisão de frigoríficos no Brasil.

Até então, a fiscalização era exclusivamente realizada por auditores fiscais públicos e concursados do Mapa. Agora, as empresas podem contratar trabalhadores temporários e até mesmo autônomos para desempenhar a função.

Um dos servidores afirma que “o Mapa está tentando boicotar o MDA. Tem vários escritórios do MDA que não têm ninguém. Isso é fruto da bancada ruralista, do qual o atual ministro do Mapa é representante”.

Guilherme Coda, nesse sentido, afirma que “os AFFAs possuem muita experiência na regulamentação sanitária dos produtos agropecuários e têm muito a contribuir com a regularização dos produtos da agricultura familiar camponesa e dos povos tradicionais, o que resultará em renda para essas famílias, valorização das culturas alimentares e acesso da população à comida de verdade”.

Proximidade com o agro

Tanto Carlos Fávaro quanto Irajá Lacerda, ministro e secretário-executivo do Mapa respectivamente, têm relações próximas com a bancada ruralista no Congresso Nacional e com o agronegócio brasileiro. Fávaro já foi vice-presidente da Associação dos Produtores de Soja do Brasil (Aprosoja Brasil), em 2010, e presidente da Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja-MT).

O chefe da pasta também segue a cartilha ruralista e se posiciona a favor da tese do marco temporal, que pode limitar o direito a demarcação de terras somente aos indígenas que estavam ocupando o território requisitado na data em que foi implementada a Constituição Federal, em 1988.

“Na realidade, nós temos que entender que há espaço para os povos indígenas suprirem as necessidades. Claro que existem povos que estão em situações deploráveis e isso precisa ser corrigido. Mas nós também não podemos fazer isso em detrimento de um setor tão importante”, disse o ministro em entrevista ao programa Roda Viva, em maio deste ano.

Na mesma linha, Irajá Lacerda afirmou que “os procedimentos de demarcação de terras indígenas eram feitos de forma arbitrária”, em um vídeo publicado em 25 de maio de 2021, no blog de seu escritório de advocacia.

“[Os procedimentos eram] realizados de forma totalmente unilateral, em que a maioria dos direitos de defesa dos não-índios foi praticamente extinto. Eram utilizados laudos antropológicos sem critério nenhum, sem fiscalização por entes competentes, feitos a bel-prazer pela Funai”, disse.

Em outro vídeo, Lacerda declara apoio ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), nas eleições do ano passado. “Olá, meus amigos. Eu me chamo Irajá Lacerda e sou candidato a deputado federal. Eu venho aqui, publicamente, manifestar o meu apoio ao presidente Bolsonaro”, diz o atual secretário na gravação.

Outro lado

Foi solicitado o posicionamento dos ministérios da Agricultura e Pecuária e do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar. Até o momento, no entanto, não houve uma resposta. O espaço está aberto para posicionamentos.

Caroline Oliveira

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