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O FASCISMO INVISÍVEL/POR GABRIEL ROCKHILL

A concepção burguesa de fascismo visa dissimular seu caráter estrutural e sistêmico, bem como as causas materiais profundas que impulsionam seu surgimento conjuntural

“Precisamos entender que, ao contrário do que nos é dito pela mídia norte-americana, o fascismo não é um fenômeno circunscrito, limitado no tempo e no espaço, ocorrido há muito tempo. Muito pelo contrário. O fascismo é algo onipresente, generalizado, ele existe em todos os lugares.” (Vicent Navarro).

Na história recente, apenas um país do mundo:

 

+ esforçou-se para derrubar mais de 50 governos estrangeiros

+ criou uma agência de inteligência que matou pelo menos 6 milhões de pessoas nos primeiros 40 anos de sua existência

+ desenvolveu uma draconiana rede policial de vigilância para destruir qualquer movimento político interno que desafiasse seu domínio

+ construiu um sistema de encarceramento em massa que enjaula uma porcentagem maior da população do que qualquer outro país no mundo, e que está inserido em uma rede global de prisões secretas e regimes de tortura.

Enquanto habitualmente chamamos esse país de democracia, aprendemos que o fascismo só ocorreu uma vez na história, em um só lugar, e que foi derrotado pela tal democracia que mencionamos acima.

A ubiquidade e a elasticidade da noção de democracia não poderiam contrastar mais fortemente com a estreiteza e a rigidez do conceito de fascismo. Afinal de contas, diz-se que a democracia nasceu há cerca de 2500 anos e que ela é uma característica definidora da civilização europeia, e até mesmo uma de suas contribuições culturais únicas para a história mundial.

O fascismo, ao contrário, supostamente irrompeu na Europa Ocidental no período entreguerras como uma anomalia aberrante, interrompendo temporariamente a marcha histórica do progresso, imediatamente após uma guerra ter sido travada para tornar o mundo “seguro para a democracia”.

Uma vez que uma segunda guerra mundial o destruiu, ou pelo menos assim nos conta a narrativa, as forças do bem começaram então a domar seu gêmeo maléfico ‘totalitário’ no Oriente em nome da globalização democrática.

Enquanto conceitos valorativos cujo conteúdo substantivo é muito menos importante do que sua carga normativa, o termo democracia tem se expandido perpetuamente, ao passo que a palavra fascismo é constantemente interditada.

A indústria do Holocausto desempenhou um papel chave neste processo através de seus esforços para singularizar as atrocidades de guerra nazistas a tal ponto que elas se tornaram literalmente incomparáveis ou mesmo impossíveis de serem “representadas”, ao mesmo tempo que as supostas forças democráticas benéficas ao mundo são repetidamente tomadas como o modelo ideal de governança global.

Conceitos na luta de classes

O debate em curso sobre a definição precisa do fascismo tem frequentemente obscurecido o fato de que a natureza e a função das definições diferem significativamente dependendo da epistemologia empregada, isto é, da estrutura geral do conhecimento e da verdade.

Para os materialistas históricos, em vez de concebê-los como entidades quase metafísicas com propriedades fixas, conceitos como o fascismo estão sempre em disputa na intrincada dinâmica da luta de classes.

A busca por uma definição universalmente aceita de um conceito genérico de fascismo é, portanto, quixotesca. Isso não ocorre, entretanto, porque os conceitos são relativos num sentido puramente subjetivista, significando simplesmente que cada pessoa tem sua própria e idiossincrática definição de tais noções.

Na verdade, eles são relacionais num sentido concreto e material, já que estão objetivamente situados nas lutas de classe.

É a ideologia burguesa que pressupõe a existência de uma epistemologia universal fora da luta de classes. Ela age como se houvesse apenas um conceito possível para cada fenômeno social, o que corresponde, certamente, à compreensão burguesa do fenômeno em questão.

De uma perspectiva materialista, o que isso no fundo significa é que a ideologia burguesa inerente à própria ideia de uma epistemologia universal, na medida em que se esforça sub-repticiamente para eliminar todas as epistemologias rivais, faz parte da luta de classes.

Se olharmos mais detidamente para as diferenças entre essas duas epistemologias, que são versões rivais acerca da própria função dos conceitos e de suas definições, percebemos que os materialistas – em acentuado contraste com o idealismo da ideologia burguesa – concebem as ideias enquanto ferramentas práticas de análise que possibilitam diferentes níveis de abstração, e cujo valor de uso reside na sua capacidade de descrever condições materiais cuja complexidade ultrapassa seu próprios limites particulares.

Nessa perspectiva, o objetivo não é definir a essência de um fenômeno social como o fascismo de uma maneira que pudesse ser universalmente aceita pela ciência social burguesa, mas sim desenvolver uma definição operacional em dois sentidos. Por um lado, essa é uma definição que funciona porque tem um valor de uso prático: ela fornece um esboço coerente de um complexo campo de forças materiais e pode auxiliar a nos situarmos em um mundo repleto de embates.

Por outro lado, uma definição como essa tem um valor heurístico e está sujeita a uma reelaboração posterior, já que os marxistas reconhecem que eles estão subjetivamente situados em processos sócio-históricos objetivos, e que mudanças de perspectiva e de contexto podem exigir sua modificação. Isso pode ser visto claramente nas três diferentes dimensões que usarei para desenvolver uma definição operacional do fascismo: a conjuntural, a estrutural e a sistêmica.

Análise multidimensional

A abordagem do materialismo histórico em relação ao fascismo confere primazia às práticas, situando-as no seio da totalidade social, que, por sua vez, é analisada através de dimensões heuristicamente distintas, embora interligadas.

A dimensão conjuntural, para começar, remete à totalidade social de um lugar e tempo específicos, como a Itália ou a Alemanha do período entre guerras. Historicamente falando, sabemos que o termo fascismo surgiu como uma descrição do modo particular de organização política empreendida por Benito Mussolini, mas que só foi teorizado gradualmente, aos trancos e barrancos.

Em outras palavras, ele não apareceu como uma doutrina ou uma ideologia política coerente que foi depois implementada, mas sim como uma descrição rudimentar e mal-acabada de um conjunto dinâmico de práticas que se transformaram ao longo do tempo (no início, diferentemente do que veio a ser depois, o fascismo na Itália era reformista e republicano, defendia o sufrágio das mulheres, apoiava algumas tímidas reformas pró-trabalhadores, tinha rixas com a Igreja Católica, e não era abertamente racista).

Foi somente depois que o movimento fascista evoluiu e começou a ganhar poder que Mussolini e alguns outros tentaram consolidar retroativamente suas práticas díspares e mutáveis, de tal forma que elas pudessem ser encaixadas dentro de uma doutrina coerente.

Em inúmeras ocasiões, o próprio Mussolini insistiu nesse ponto, escrevendo, por exemplo: “O fascismo não era o alimento de uma doutrina previamente elaborada em uma mesa; ele nasceu da necessidade de ação, e era ação; não era um partido, mas, nos dois primeiros anos, um antipartido e um movimento”.

José Carlos Mariátegui realizou uma análise perspicaz e pormenorizada das lutas internas existentes desde cedo no movimento fascista italiano, que estava polarizado entre uma facção extremista e um campo reformista de inclinações liberais. Mussolini, segundo Mariátegui, ocupou uma posição centrista e evitou favorecer indevidamente um grupo em detrimento do outro até 1924, quando o político socialista Giacomo Matteotti foi assassinado pelos fascistas.

Isso conduziu o conflito entre as duas facções fascistas a um grau máximo de tensão, e Mussolini acabou sendo forçado a escolher. Após um aceno malsucedido à ala liberal, ele acabou ficando do lado dos reacionários.

Desde sua origem, portanto, o conceito de fascismo tem sido objeto de disputa social e ideológica, seja no embate entre extremistas e reformistas dentro do campo fascista, ou, de modo mais geral, entre fascistas e liberais dentro do campo capitalista.

Em última instância, estes conflitos foram subordinados ao conflito mais amplo entre capitalistas e anticapitalistas.

É a partir desse ponto de vista de níveis entrelaçados de luta que podemos estabelecer uma primeira definição operacional do fascismo, uma vez que ele tenha mais ou menos se consolidado, identificando como ele emergiu a partir de uma conjuntura e de uma etapa muito específica da guerra de classes global.

No rastro ameaçador da Revolução Russa (que foi seguida por revoluções fracassadas na Europa e, posteriormente, pela Grande Depressão no mundo capitalista), Mussolini e sua gangue utilizaram as comunicações e a propaganda de massa para, cuidadosa e eficazmente,  mobilizar setores da sociedade civil – e particularmente a pequena burguesia – com o apoio dos grandes capitalistas industriais, valendo-se de uma ideologia nacionalista e colonial de transformação “radical”, a fim de esmagar o movimento operário e catapultar as guerras de conquista.

Nesse nível de análise, o fascismo é, em termos práticos, nas palavras de Michael Parenti, “nada mais do que uma solução final para a luta de classes, a supressão e o aproveitamento total das forças democráticas para benefício e lucro dos círculos financeiros mais elevados.

O fascismo é uma falsa revolução.”

Essa análise conjuntural é, evidentemente, muito distinta das narrativas liberais sobre o fascismo, que tendem a se concentrar em fenômenos superficiais e elementos superestruturais que são separados de qualquer consideração científica da economia política internacional e da luta de classes.

Tomando-o como uma “política do ódio”, como uma lógica do “nós contra eles”, como uma rejeição da democracia parlamentar, como uma questão de personalidades aberrantes, como uma rejeição da ciência ou outras coisas afins, dá no mesmo: a visão liberal do fascismo está preocupada com seus traços epifenomênicos ao invés de relacioná-lo à totalidade social.

É esta última, entretanto, que confere a esses traços – quando de fato eles existem, de uma forma ou de outra – seu significado e função precisos.

A este respeito, vale recordar a observação de Martin Kitchen, quando ele diz que “todos os países capitalistas produziram movimentos fascistas após o crash de 1929”.

Se o conceito burguês de fascismo obscurece a totalidade social da conjuntura na qual o fascismo europeu, precisamente sob essa denominação, emergiu historicamente, ele projeta uma sombra ainda mais extensa sobre as dimensões estruturais e sistêmicas do fascismo como prática.

Como veremos no caso de George Jackson, os marxistas têm insistido na importância de inscrever a análise conjuntural do fascismo europeu dentro de um quadro de referência estrutural, com o objetivo de revelar as formas de fascismo operante sem determinados contextos que frequentemente os teóricos liberais ora afirmam que não existem, ora alegam que são, de algum modo, pouco significativos.

Com um olhar mais detido, os Estados Unidos do período entreguerras, por exemplo, revelam semelhanças estruturais impressionantes com o que aconteceu na Itália e na Alemanha.

Finalmente, a dimensão mais ampla de análise, que parece ser invisível para os liberais, é o sistema mundial capitalista. Tal como materialistas históricos como Aimé Césaire e Domenico Losurdo argumentaram, a barbárie perpetrada pelos nazistas deve ser entendida como uma manifestação específica da longa e profunda história da carnificina colonial, que levou o capitalismo a todos os cantos do planeta.

Se há algo de extraordinário no nazismo, assinalou Césaire, é que os campos de concentração foram construídos na Europa, e não nas colônias. Deste modo, ele nos convida a situar as dimensões conjuntural e estrutural de análise dentro de um quadro conceitual sistêmico, isto é, aquele que dá conta de toda a história global do capitalismo.

O conceito burguês de fascismo procura singularizá-lo como um fenômeno idiossincrático, que é em grande parte ou totalmente superestrutural, a fim de impedir qualquer avaliação de sua onipresente existência na história da ordem mundial capitalista.

Ao invés disso, a abordagem do materialismo histórico propõe uma análise multidimensional da totalidade social, com o fito de demonstrar como a especificidade conjuntural do fascismo europeu do entre guerras pode ser melhor compreendida quando a situamos em uma determinada fase estrutural da luta de classes capitalista e, em última instância, na história sistêmica do capital, que veio ao mundo – nas palavras de Karl Marx para descrever a acumulação primitiva –“escorrendo sangue e lama por todos os poros, da cabeça aos pés”.

À medida que subimos ou descemos nos níveis de análise, o significado preciso e a definição operacional do fascismo podem mudar em razão dos fatores ​​materiais envolvidos, e alguns, portanto, preferiram restringir o termo fascismo às suas manifestações conjunturais (que podem, às vezes, ser úteis para fins de clareza).

No entanto, mesmo que esta última estratégia seja empregada, uma análise completa do fascismo que o insira na totalidade social requer, em última análise, uma explicação integrada na qual se reconheça que o conjuntural está situado no estrutural, e que este, por sua vez, está incorporado ao sistêmico.

Tomado como uma prática, o fascismo é um produto do sistema capitalista e suas formas precisas variam dependendo da fase estrutural do desenvolvimento capitalista e do contexto sócio-histórico em questão.

A ideologia da excepcionalidade do fascismo

Certa vez, Simone de Beauvoir disse em tom jocoso que “na linguagem burguesa, a palavra homem significa um homem burguês”.

Na verdade, quando os membros da classe dominante colonial conhecidos como “os pais fundadores dos Estados Unidos da América” declararam solenemente ao mundo que “todos os homens são criados iguais”, eles não queriam dizer que todos os seres humanos eram realmente iguais.

É somente ao compreendermos sua premissa não explicitada- que homem significa homem burguês – que podemos apreender totalmente seu verdadeiro propósito: os não-humanos do mundo podem ser submetidos às formas mais brutais de expropriação, escravidão e carnificina colonial.

Essa operação dúplice, pela qual um particular (a burguesia) tenta se passar por um universal (a humanidade), é uma característica bem conhecida da ideologia burguesa.

Sua forma invertida, no entanto, talvez seja ainda mais enganosa e insidiosa, já que, até onde eu saiba, não foi amplamente diagnosticada.

Em vez de universalizar o particular, essa operação ideológica transforma o sistêmico no esporádico, o estrutural no singular, o conjuntural no idiossincrático.

O caso do fascismo é exemplar. Toda vez que seu nome é invocado, somos ritualisticamente redirecionados pela ideologia dominante para o mesmo conjunto de exemplos históricos peculiares na Itália e na Alemanha, que supostamente servem como padrões gerais com os quais julgamos quaisquer outras possíveis manifestações do fascismo.

De acordo com uma metodologia alheia aos princípios da ciência, é o particular que rege o universal, e não o contrário.

Em sua forma ideológica mais extrema, isso significa que se não existem botas de cano alto, saudações de SiegHeil e soldados marchando a passos de ganso, então não podemos dizer que se trata daquilo que é comumente conhecido como fascismo.

Esta ideologia da excepcionalidade do fascismo é um resultado natural da noção burguesa de fascismo.

Ao conceituar o fascismo germano-italiano como algo sui generis e defini-lo sobretudo em termos de suas características epifenomênicas, ela o separa de suas raízes profundas no sistema capitalista e ofusca os paralelos estruturais com outras formas de governança repressiva ao redor do mundo.

Essa ideologia desempenha assim um papel crucial na luta de classes: ela toma uma característica geral da vida sob o capital e a transforma em uma anomalia, que alguns até procuraram elevar, no caso do nazismo, ao status metafísico de algo incomparável em sua singularidade irredutível. O particular, portanto, serve para ocultar o geral.

Um dragão na barriga do monstro

George Jackson rejeitou veementemente a particularização ideológica do fascismo e apontou todas as semelhanças estruturais entre o fascismo europeu e a repressão nos Estados Unidos.

Não por acaso, um crítico liberal assinalou certa vez que os EUA não poderiam ser considerados um país fascista simplesmente porque Jackson assim o dissera, descartando com isso, de imediato, sua análise estrutural como se tratasse tão somente de uma opinião subjetiva (um caso clássico de projeção liberal).

O argumento de Jackson, no entanto, não era redutível a um pronunciamento ex cathedra, mas foi baseado em uma comparação acurada, materialista, entre a situação nos Estados Unidos e na Europa.

“Estamos sendo reprimidos nesse instante”, escreveu ele. “Já existem tribunais que abdicam da justiça, já existem campos de concentração. Há mais polícias secretas neste país do que em todos os outros juntos –são em tão grande número que elas já constituem uma classe totalmente nova que se anexou ao complexo de poder. A repressão está aqui.”

Quando Jackson se refere aos EUA como “o Quarto Reich” e compara as prisões norte-americanas a Dachau e Buchenwald, ele obviamente está rompendo com “o protocolo da excepcionalidade” que impulsiona a indústria do Holocausto ao elevar o fascismo europeu ao status singular de algo incomparável.

E, no entanto, o que ele na verdade está fazendo em suas análises dos EUA é simplesmente rejeitando a abordagem acientífica do fascismo descrita acima, que enfatiza as idiossincrasias com o intuito de esconder as relações estruturais.

Em vez disso, partindo do outro extremo, com uma análise materialista dos modos de governança em vigor na América, eis o que ele descobriu:

O novo estado corporativo [nos Estados Unidos] se consolidou superando diversas crises, implantou suas elites dominantes em todas as instituições importantes, teceu seus acordos com o setor do trabalho por meio de suas elites, erigiu, fria e selvagemente, a mais colossal rede de agências de proteção, repleta de espiões, que se pode encontrar em qualquer estado policial do mundo. A

violência da classe dominante deste país no longo processo de sua marcha em direção ao autoritarismo e a seu último e mais alto estágio, o fascismo, não pode ser igualada em seus excessos por qualquer outra nação na terra, hoje ou ao longo da história.

Aqueles que rejeitariam isso como uma hipérbole, recusando assim até mesmo as comparações históricas, simplesmente revelam uma das consequências mais insidiosas da ideologia da excepcionalidade do fascismo: qualquer análise materialista de situações comparáveis é a prioriverboten[i].

Em vez de recuar horrorizado diante do termo fascismo, que tem sido ideologicamente restringido a algumas anomalias históricas, agora já distantes, ou ao que George Seldes chamou de “fascismo longínquo”, Jackson extrai a conclusão mais plausível do ponto de vista de uma análise baseada no materialismo histórico : o que está acontecendo diante de seus olhos nos Estados Unidos é uma intensificação e uma generalização do que ocorreu, sob condições ligeiramente diferentes, na Itália e na Alemanha.

Na verdade, ele identifica diretamente as forças motrizes que estão por trás do controle da percepção que tenta nos cegar para o fascismo americano como sendo um produto cultural desse mesmo fascismo:

“Logo atrás das forças expedicionárias (os porcos) vêm os missionários, e a sanha colonizadora é completa. Os missionários, com os benefícios da cristandade, nos ensinam o valor do simbolismo, dos presidentes mortos e da taxa de redesconto. […]

Na área da cultura […] estamos ligados à sociedade fascista por correntes que estrangularam nosso intelecto, bagunçaram nossa inteligência, e que nos fazem cambalear para trás em uma fuga selvagem e confusa da realidade”

Além disso, Jackson, como outros marxistas-leninistas, identifica o núcleo do fascismo em “um rearranjo econômico”: “É a resposta do capitalismo internacional ao desafio do socialismo científico internacional.” Seu traje nacionalista, ele insiste com razão, não deveria nos distrair de suas ambições internacionais e de seu impulso colonizador: “Em sua essência, o fascismo é capitalista e o capitalismo é internacional.

Por debaixo de suas carapaças ideológicas nacionalistas, o fascismo sempre é, em última análise, um movimento internacional.”

Jackson, portanto, responde à superinflação ideológica do conceito de democracia incrementando o alcance do conceito de fascismo de modo que ele abranja toda a violência, repressão e controle atuantes na imposição, na manutenção e na intensificação das relações sociais capitalistas (incluindo aí o Estado de bem-estar reformista).

Alguns podem preferir distinguir entre essa forma mais ampla de fascismo, que incluiria igualmente regimes autoritários e liberais, e uma definição mais específica de fascismo que se refere ao uso extensivo da repressão estatal e paraestatal com o propósito final de aumentar a acumulação capitalista.

Entretanto, essas não são, obrigatoriamente, definições mutuamente exclusivas, uma vez que a violência das relações sociais capitalistas pode assumir muitas roupagens diferentes – repressão direta, exploração econômica, degradação social, sujeição hegemônica, etc. – e é exatamente isso que Jackson traz à tona.

Desmistificando o conceito burguês de fascismo

A concepção burguesa de fascismo visa dissimular seu caráter estrutural e sistêmico, bem como as causas materiais profundas que impulsionam seu surgimento conjuntural, a fim de apresentá-lo como algo absolutamente excepcional, circunscrevendo-o em um tempo e lugar determinados.

Essa concepção procura convencer-nos, a todo custo, de que o fascismo não é um aspecto essencial da dominação capitalista, mas sim uma anomalia ou uma ruptura extraordinária do seu curso normal de funcionamento.

Além disso, apresenta-o como algo distante, enterrando-o em um passado já superado pelo progresso democrático, rotulando-o como uma ameaça futura se as pessoas não se conformarem aos ditames do regime liberal, ou por vezes localizando-o em terras exóticas que ainda estão muito “atrasadas” para a democracia.

A abordagem materialista do fascismo recusa as viseiras impostas pela manipulação da percepção inerente ao conceito burguês e identifica claramente o duplo gesto ideológico da dominação capitalista, que inflaciona e até universaliza seus traços supostamente positivos, construindo uma história mística da chamada democracia ocidental, e apaga ou particulariza suas características negativas convertendo o fascismo em uma anomalia idiossincrática.

do outro extremo, o materialismo histórico examina como o capitalismo realmente existente depende de dois modos de governança que funcionam conforme a lógica traiçoeira da tática de interrogatório do “policial bom moço/policial rebelde”: onde e quando o policial bom moço não for capaz de convencer as pessoas a jogarem de acordo com as regras do jogo capitalista, o policial rebelde do fascismo está sempre à espreita, escondido nas sombras, para fazer o trabalho sujo por todos os meios necessários.

Se o porrete deste último parece ser uma aberração quando comparado à benevolência do policial bom moço, é apenas porque alguém foi induzido a acreditar no falso antagonismo entre eles, que dissimula o fato fundamental de que estão trabalhando juntos em um objetivo comum.

Embora seja certamente verdade, do ponto de vista da organização tática, que lidar com o histrionismo do policial bom moço é geralmente mais preferível à barbárie descarada do policial rebelde, é estrategicamente da maior importância identificá-los pelo que realmente são: parceiros no crime capitalista.

*Gabriel Rockhill é professor de filosofia na Universidade Villanova (EUA). Autor, entre outros livros, de Counter-History of the Present: Untimely Interrogations into Globalization, Technology, Democracy.

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