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Defenda o seu “quintal”

Cuide do seu quintal

Apesar de tudo, algo melhorou na vida social e política no decorrer das últimas décadas. Aqueles que realmente querem mudar as coisas abandonaram definitivamente a ilusão de que seria possível obter resultados reais através da participação em eleições, governos, comissões de ética, convenções cidadãs e petições.

Mesmo quando os partidos ecologistas ou de esquerda “radical” fizeram parte dos governos, em qualquer lugar do mundo, eles não conquistaram praticamente nenhum avanço sobre o plano social ou ecológico.

Embora tudo pareça estar bloqueado face às “maiorias silenciosas”, sempre de acordo com os governantes, assistimos a uma ebulição de ações práticas: impedir a deterioração do mundo, por menor que seja a escala, tem efeitos reais. E, neste domínio, a taxa de sucesso parece estar claramente em alta: para falar apenas da França, as lutas acabaram vencedoras em Notre-Dame-des-Landes; em Center Park; no que concerne o novo terminal do aeroporto de Roissy, no Triângulo de Gonesse, perto de Paris (Europacity); na Barragem de Siven, nos armazéns da Amazon etc.

Frequentemente, foram as ZAD [“zonas a defender”] prolongadas que impediram a realização destes “grandes projetos inúteis”.

E o mais notável talvez seja o medo que visivelmente tomou os “gestores” e “planejadores”: diversos projetos são abandonados mesmo antes da instauração de uma ZAD [“zonas a defender”] ou de outras formas de militância sobre o terreno, isto é, logo após as primeiras contestações. Outros projetos não são sequer concebidos: há uma moratória de fato sobre a construção de novas rodovias e novas centrais nucleares.

O “progresso” e a “modernização” começam a ter chumbo nas asas. Toda barragem, todo trecho de TGV ou de estrada, toda usina ou armazém, toda ponte, porto ou aeroporto, todo centro comercial e todo latifúndio agrícola, toda rede elétrica, todo medidor, todo desperdício que se propõe, na França, corre agora o risco de ir de encontro com opositores bem determinados.

As reclamações das indústrias, dos políticos e dos administradores, em resposta a isso, são, verdadeiramente, bons sinais.

Seria um absurdo chamar tais lutas de “nimby” [acrônimo para not in my backyard – “não no meu quintal”. Para além dos motivos pessoais de certos participantes, essas lutas criam novas realidades sociais e alteram as relações de força.

Se cada um defendesse seu quintal, não haveria mais poluição em lugar algum. Da mesma maneira, os “faucheurs volontaires” contribuíram mais para impedir (mas infelizmente ainda não acabar) o avanço de organismos geneticamente modificados do que todas as comissões parlamentares reunidas.

As “minorias atuantes” são, às vezes, mais poderosas que as “maiorias silenciosas”. O essencial é dizer: “não passarão”.

Se cada projeto extrativista do mundo cruzasse com pessoas decidias a defender seu “quintal”, o capitalismo mundial desmoronaria rapidamente. Além disso, as ZAD demonstram que “agir” não é a mesma coisa que “violência”.

Em geral, a oposição absurda entre “violência” e “não violência”, dentre as quais os manifestantes são forçados a escolher, e que permite, há bastante tempo, que os poderes desunam e enfraqueçam as oposições extraparlamentares está sendo ultrapassada. De qualquer forma, a violência sempre vem do Estado.

É verdade, as relações com as populações “locais” ou, de maneira geral, com os “cidadãos comuns” continua um pouco complicada, assim como com as ocupações urbanas.

As ZAD parecem facilmente ser um mundo “separado”, “paralelo”, “a parte”, povoado sobretudo por jovens sem trabalho nem família, que podem, eventualmente, suscitar as simpatias de certos “cidadãos comuns”, mas que dificilmente se disseminariam.

Assim, as ZAD e os Gilets Jaunes continuam, até hoje, sendo mundos distantes.

Eu posso me lisonjear por ter acompanhado esta evolução desde seus princípios, que coincidiam com a minha primeira juventude. Quando eu tinha cerca de 13 anos, em 1975, eu já participara em uma “iniciativa cidadã” em meu bairro na cidade de Colônia (na Alemanha) para impedir a derrubada de diversas árvores para a duplicação de uma grande via de circulação.

Sem sucesso. Mas, pouco depois, uma ocupação (espécie de ancestral das ZAD) se opunha, em Colônia, à construção de uma rodovia no meio da cidade, desta vez obtendo sucesso. E eu me lembro de uma moça cantando “A flor cresce e o concreto morre” – para além de uma certa inocência, eu não posso deixar de pensar que o papel do concreto já estava, neste momento, claramente anunciado!

Muito mais tarde, na Itália, eu organizei por vários anos um comité que se posicionou com bastante força, e finalmente de maneira vitoriosa, contra a instalação de duas grandes antenas de telefonia celular próximas ao vilarejo onde vivia.

Se eu já me simpatizo espontaneamente com estas lutas que travam as rodas da carruagem (ou, melhor, do 4×4) que nos leva ao abismo, foi com um interesse particular que descobri a existência da ZAD da colina do Mormont, perto de Lausana, na Suíça.

Seus ocupantes se opõem ao projeto de ampliação da mina de calcário explorada há décadas pela produtora suíça de cimento Holcim – responsável, segundo um relatório do Greenpeace, por diversas “violações dos direitos humanos” nos cantos do mundo pelos quais passou.

Esta empresa, que já era a segunda maior produtora de cimento do mundo, fundiu-se, em 2015, com a empresa francesa Lafarge.

Esta última nunca tentou esconder seu apreço pelo bem comum, desde a época em que construía a Muralha do Atlântico para a ocupação nazista até o escândalo de 2020, quando foi pega jogando dejetos no Sena em plena Paris, passando pelos resgates pagos ao Estado Islâmico, na Síria, em troca de sua “proteção”.

Esta empresa, depois de ter devorado uma parte da colina, agora quer obter uma autorização para destruir o que sobrou, apesar de seu valor paisagístico, natural e arqueológico e de ser oficialmente “protegida”.

A ZAD se instalou em outubro de 2020 na parte já comprada pela produtora de cimento, com vistas a uma futura expansão. Até agora, as forças da ordem a incomodaram pouco, enquanto esperam pelo fim do processo jurídico.

Como toda ZAD que se preza, a ocupação não pretende apenas impedir uma nova expansão da lógica mortífera do desenvolvimento do capitalismo, mas se propõe, igualmente, a coletivamente elaborar novas formas de vida.

Tal natureza das ZAD é bastante conhecida para que terminemos por aqui. Dois aspectos mais inusitados da ZAD de Mormont parecem ainda merecer nossa atenção.

Para começar, seu objetivo: não é nem uma usina nuclear, nem de um aeroporto, nem de uma rodovia que suscita a ira, mas a simples extração de calcário para a produção de cimento e de concreto.

A priori, isso pareceria muito menos nocivo que, por exemplo, a extração de petróleo ou de ouro, tanto no que diz respeito à extração quanto a utilização destes recursos. O concreto não passa por algo tão danoso como o plástico, os pesticidas e o petróleo.

Mas, como procurei demonstrar em meu livro Béton – Arme de construction massive du capitalisme [Concreto – Arma de Construção Massiva do Capitalismo], o concreto não é apenas danoso por causa das emissões de CO2 que ocasiona, das quantidades de areia que requer, edos dejetos que deixa pelo caminho, mas, sobretudo, devido ao que ele permite: a concretação da paisagem, a uniformização das formas de construir, a desfiguração do mundo.

Uma verdadeira “materialização” da lógica do valor que governa o capitalismo, o concreto não é um material “neutro” que pode ser bem ou mal utilizado, dependendo do caso, mas um elemento tão arrasador quanto o petróleo, a energia nuclear ou os pesticidas.

Não podemos deixar de ficar contentes, portanto, que com esta nova ZAD, ao direcionar-se contra indústria de concreto, faz cair um pouco mais a sua máscara de inocência para integrar plenamente o clube das ameaças a serem combatidas se queremos salvar as bases da vida na Terra.

Outro aspecto notável: é a primeira ZAD na Suíça. Isso significa que a contestação chegou ao “coração da besta”: como sabemos, a Suíça é a base de várias multinacionais das mais detestáveis do mundo (Nestlé, Novartis etc.).

São, em maioria, elas, e não os meticulosos relojeiros, que criam a riqueza mercantil da Confederação Helvética.

Apesar de seus méritos, elas se veem cada vez mais sob contestação em seu próprio território: em novembro de 2020, uma maioria dos suíços aprovou uma iniciativa popular propondo uma lei que responsabilizaria as multinacionais, perante os tribunais, por seus delitos, mesmo aqueles realizados para além das fronteiras suíças.

Contudo, por uma particularidade das leis suíças, a “maioria dos cantões” que não participaram impede a efetivação desta proposta.

É, de fato, uma característica do extrativismo é ser realizado, ao menos atualmente, longe daqueles que o aproveitam mais, nos lugares mais pobres do outro lado do mundo.

Em geral, os ricos não extraem petróleo em seu jardim nem garimpam ouro, com uso de cianeto, no rio que passa pelo seu chalé de montanha, onde pescam trutas. Com o concreto, a situação é um pouco diferente.

O calcário encontra-se em diversas regiões do mundo, de modo que o valor de mercado de sua tonelada é bem baixo – o que torna inconveniente seu transporte por longas distâncias.

Extrai-se-lhe, portanto, frente à porta. Trata-se de um impacto difícil de se exportar, ele é mais “democrático” e atinge até mesmo o coração da Europa.

Eis porque é tão tido à contestação: dificilmente pode-se fechar os olhos para ele, da mesma maneira com que se “esquece” que o cobalto dos smartphones vêm de minas ensanguentadas da África.

O concreto nos mostra que é uma ilusão acreditar cinicamente que apenas os outros pagarão o “preço do progresso”. De uma maneira ou de outra, o capitalismo vai se virar contra os países que o criaram.

As belas montanhas suíças, reduzidas à pó para a construção de rodovias, são apenas um pequeno exemplo.

Certamente, é preciso desejar que os zadistas helvéticos continuem a ir além do estado da simples indignação diante do atentado às orquídeas (“As Orquídeas” é o nome da associação que promove a ZAD) ou às ruínas celtas.

A luta contra o aeroporto de Notre-Dame-des-Landes também não se esgotava na defesa dos sapos, por mais importante que ela fosse.

“Contra o concreto e seu mundo” é, efetivamente, uma proposta bastante adequada, assim como “Contra o aeroporto e seu mundo” e cem outros slogans do gênero.

Não podemos mais falar, em boa fé, de “desenvolvimento durável” e de outras formas de green-washing.

Tudo está relacionado; e quem recusa um impacto particular se vê rapidamente obrigado, logicamente, a recusar igualmente tudo o que produziu este dano e o fez “necessário”.

Assim, para se ater ao concreto: para que se cansar propondo “alternativas” como o “concreto ecológico” ou deixar impor-se um debate inútil sobre a questão de saber se é preciso importar o cimento de outros países?

Já não existem edifícios e superfícies concretadas o suficiente e não seria a hora de começar a desmantelá-los?

Não fomos capazes de construir sem usar o concreto por milhares de anos? A pedra natural não existe mais?

É verdade, ela poderia custar “mais caro”. Isso coloca a “economia” em discussão. Mas, como acabamos de dizer: se puxamos um fio do tecido de mentiras ao nosso redor, todo o resto vem junto.

Anselm Jappe é professor na Academia de Belas Artes de Sassari, na Itália, e autor, entre outros livros, de Crédito à morte: A decomposição do capitalismo e suas críticas (Hedra).

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