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Real 30 anos: como o plano evitou a dolarização e garantiu a soberania da moeda

30anos do real
Instituído no final de fevereiro de 1994, o Plano Real extinguiu quase uma década de altas inflacionárias no Brasil. No momento de tamanha fragilidade e importância para o futuro brasileiro, membros da equipe econômica debatiam quais rumos tomar. Uma das opções era uma via até então considerada bem-sucedida na Argentina: a dolarização.
Na abertura dos anos 1990, o Brasil se encontrava no pior momento inflacionário de décadas, tendo entrado em hiperinflação — quando a taxa ultrapassa os 50% ao mês — no ano anterior. O “milagre econômico” da ditadura militar havia chegado ao fim.
Com origem em problemas internos, o costume de indexação de preços que já pré-inflacionavam a economia e garantiam ganhos financeiros a quem conseguia poupar, e o choque causado pelo aumento de juros do Banco Central americano, entre 1989 e 1993, a inflação marcou 2700% no período, corroendo o poder de compra, a capacidade de poupança e a taxa de emprego da população.
Algo precisava ser feito para recuperar não só a economia do Brasil, mas também o espírito e o orgulho da sociedade brasileira.
Não houve falta de tentativas. Na busca por combater a desvalorização da moeda, os governos civis aplicaram vários planos de estabilização econômica. Nenhum foi bem-sucedido em controlar a inflação. Dentre os mais famosos ficaram o Plano Cruzado de José Sarney — que teve como uma das medidas mais famosas o congelamento de preços — e o Plano Collor, que viu o confisco das poupanças.
O que foi o Plano Real?
Em 1994, no governo de Itamar Franco, que assumiu após a renúncia de Fernando Collor, o país enfrentava uma inflação de mais de 40% ao mês. Sob liderança de Fernando Henrique Cardoso, uma nova estratégia foi montada: o Plano Real.
Em entrevista à Sputnik Brasil, membros da equipe econômica que elaboraram o Plano Real explicaram um pouco o pensamento da época.
Instituído em 27 de fevereiro de 1994 com a Medida Provisória nº 434, o Plano Real adotou um misto de medidas econômicas que se mostraram bem-sucedidas no controle da inflação ao longo da história, especialmente aquelas ocorridas no período entreguerras, afirmou Gustavo Franco, ex-presidente do Banco Central e sócio-fundador da Rio Bravo Investimentos.
Dividido em três partes, a primeira viu o controle dos gastos públicos e o equilíbrio fiscal do governo. Diversas privatizações foram feitas ao longo dos anos, desde setores das telecomunicações, energia, ferrovias aos bancos estaduais, que atuavam como bancos centrais dos estados ao financiarem seus governos.
A segunda viu a criação da Unidade Real de Valor (URV), uma medida paralela que serviria de transição entre a moeda antiga e a nova. A final viu a instituição de métodos de controle, novas âncoras nominais e cambiais que ajudariam a moeda a se firmar nos próprios pés.

URV ‘dolarizou’ a economia do Brasil?

No entanto, o grande diferencial do Plano Real dos demais programas adotados no Brasil foi a criação da URV, uma unidade contábil que serviu de âncora cambial para a estabilidade econômica ao Brasil, disse Rodrigo Rodriguez, professor adjunto de economia na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
A URV, explicou o professor de história de desenvolvimento econômico do Brasil, “delimitou a quantidade de moeda nacional pelo tamanho das reservas internacionais”, ou seja, reduziu a quantidade de cruzeiros circulantes com base nas reservas de uma determinada moeda internacional. No caso, a escolhida foi o dólar, com uma paridade de US$ 1 para uma URV.
Segundo Gustavo Franco, a adoção do dólar “facilitava as contas e ajudou muito na boa aceitação que a URV teve nos primeiros momentos do plano”.
Em termos práticos, a URV servia como um referencial de valor para a sociedade. O cruzeiro atuava como meio de pagamentos, e a URV como unidade de conta, isto é, na qual o valor de algo é determinado.
Com o objetivo de servir como ponte entre o cruzeiro e a moeda que viria a seguir, o real, no dia a dia, as transações funcionavam da seguinte maneira: os produtos estavam precificados com a URV, mas ao pagar o cidadão deveria utilizar o cruzeiro.
“Todos os dias, o cruzeiro desvalorizava em relação à URV”, afirmou Rodriguez.
Dessa maneira, a moeda antiga era aos poucos recolhida da economia e, como a URV era indexada pelo câmbio, ficava protegida da inflação.
As unidades monetárias conviveram juntas por alguns meses até que em 1º de julho o real foi finalmente lançado, unindo essas duas funções em uma só moeda.
No início, o real manteve a paridade de 1:1 com o dólar. Esse é um elemento típico da dolarização da economia, destacou Rodriguez, “mas não é a dolarização inteira”.
Mais abrangente, esse processo “envolve desde a indexação de contratos em dólar até o uso de dólares como meio de pagamento corrente na economia”.
No caso brasileiro, explicou, o real não era “mera réplica do dólar”, mas flutuava dentro dos limites estabelecidos por bandas cambiais, “de modo que não seguia rigorosamente o comportamento do dólar”.

A criação da URV foi muito influenciada por um projeto de dois economistas-chave da equipe econômica, André Lara Resende e Pérsio Arida, que tinham desenvolvido no passado a Proposta Larida, uma moeda indexada a uma taxa de correção monetária.

Apelidada de novo cruzeiro nos exercícios teóricos da dupla, a moeda existiria paralelamente ao cruzeiro e teria adoção voluntária, assim como a URV. Diferentemente da URV, no entanto, sua indexação não era feita ao câmbio e esta não constituía uma nova moeda, apenas uma unidade de conta.
Só que na época do Plano Real, outro mecanismo de controle inflacionário estava em voga, sendo inclusive defendido por Lara Resende e Arida: o currency board ou Comitê Monetário.
Nessa proposta, o Banco Central do país só consegue emitir mais moeda se puder lastrá-las em uma “moeda âncora” por meio de uma regra de conversão. A âncora é, geralmente, uma moeda estrangeira e, no caso da Argentina, o dólar.
Instituído por Domingo Cavallo, ministro da Economia argentino, a rigidez desse plano econômico significou que o governo argentino não conseguiria “imprimir” dinheiro para cobrir suas dívidas. O Plano Cavallo instituiu também a relação de 1:1 entre o dólar e o peso conversível, com a moeda norte-americana sendo aceita como moeda de pagamentos no país.
“Em alguns casos, a cobertura não precisa ser de 100%, sendo na prática um pouco mais flexível, cobrindo entre 90% e 50% da moeda em circulação”, explicou Rodriguez.
Na prática, a economia argentina estava dolarizada, uma vez que o Estado fica impossibilitado de realizar política monetária. A única diferença é a reversibilidade da política, sendo mais fácil extinguir um Comitê Monetário do que recriar um Banco Central.
Essa proposta foi apreciada por economistas do Plano Real, que viam na via argentina uma forma de instituir forçosamente uma saúde fiscal no governo. Segundo Ciro Gomes, que atuou como ministro da Fazenda de Fernando Henrique Cardoso, os problemas desse caminho foram vistos por alas do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB).

“A discussão foi feita com muitas alternativas e havia certamente a ideia de dolarização, e nós vetamos. Quando eu digo nós, éramos o Tasso [Jereissati], o Fernando Henrique [Cardoso], o [Mário] Covas, enfim, vamos dizer, o lado político do PSDB.”

Franco, um dos líderes do plano de estabilização brasileiro, também destacou as lições aprendidas com o euro, moeda europeia que estava começando naquele momento. “A solução que foi adotada para o Brasil em 1994 era o Estado das Artes. Era a melhor possível naquele momento”, disse.

“Nós fizemos aqui uma solução híbrida, mista, brasileira, criativa e bem-sucedida, muito bem-sucedida. Eu não sei como poderia ter sido melhor.”

É difícil especular o que teria sido do Brasil se tivessem sido feitas outras escolhas. Durante sua consolidação, o real passou por três crises internacionais, a do México (1995), a Asiática (1997–1998) e a crise da Rússia (1998).
Apesar de ter sido afetado diretamente, o país e sua nova moeda sobreviveram, ainda que aos custos de uma taxa de juros a 45%.
Em um primeiro momento, explica Fábio Sobral, economista e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), a paridade do real e do dólar ajudou a desindustrializar ainda mais o Brasil, uma vez que o produto nacional perdeu competitividade no mercado externo. “Ao mesmo tempo, isso facilitou as importações. Como o dólar ficou barato, era mais vantajoso trazer produtos importados do que produzi-los internamente.”
A princípio, explica, isso ajudou muito a controlar a inflação, uma vez que forçou os produtores brasileiros a manterem o preço baixo para não perder competitividade com os importados.

“Mas o desastre [da desindustrialização] pôde ser revertido a partir de 1999, quando houve o processo de desvalorização do real”, disse Sobral.

Isso permitiu que o país se tornasse superavitário e acumulasse uma reserva de dólares. Mais tarde, com o real estabelecido, outras crises não incomodaram tanto. Foi o caso da “marolinha” de 2007 a 2008, assim apontada pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Pela primeira vez desde a época do Império, apontou Sobral, o Brasil conseguiu não ser muito afetado por uma crise financeira mundial.
No entanto, aponta Rodriguez, anos de desindustrialização cobraram seu preço. “A economia brasileira seguiu em uma trajetória desindustrializante que se traduz em um baixo crescimento da economia brasileira nos últimos 30 anos”.
Fabian Falconi

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