Não foi a Damares e a extrema-direita que inventaram a “Ideologia” ou a “Teoria da Identidade de Gênero” para açular sobretudo o povo evangélico contra a esquerda. Elas apenas surfaram a onda em forma safada. A “Teoria da Identidade de Gênero”, criada em torno dos anos 1975, logicamente nos USA, teve como precursor o psicólogo John Money [1921-2006].
Ela difundiu-se como poderoso subproduto ideológico da maré liberal que varreu o mundo nas últimas três décadas, com o enorme enfraquecimento do mundo do trabalho.
Devido ao seu poder desorganizador do movimento social, a “Teoria da Identidade de Gênero” foi fortemente apoiada pelo imperialismo.
Quando da aposta das administrações Bill Clinton [1993-2001] na globalização e na internacionalização do capital, com o consequente abandono do trabalhador manufatureiro estadunidense como base eleitoral privilegiada, o identitarismo e a “Teoria da Identidade de Gênero” transformaram-se em referências maiores do Partido Democrata.
Construto político-ideológico nascido e voltado para as classes médias liberais, o identitarismo (de raça, de gênero, de nacionalidade, etc.) contribuiu para o naufrágio da candidatura Hillary Clinton, em 2016, devido à migração eleitoral de importantes facções dos trabalhadores brancos e negros em direção a Donald Trump.
O identitarismo retornou vitaminado com a vitória de J. Biden, em 2021. No Brasil, o lulo-petismo tem também procurado, sobretudo com o identitarismo negro, reconstruir uma nova base eleitoral, após o rompimento dos laços referenciais com o mundo do trabalho, devido a sua orientação social-liberal.
Reprodução da espécie
Biologicamente, a espécie humana divide-se em dois sexos, o feminino e o masculino, determinados pela incidência celular, nas mulheres, do cromossoma XX, e, nos homens, do XY. Esse é, desnecessário dizer, um padrão fortemente dominante, com diversos desvios estatisticamente marginais – hermafroditismo, etc.
Entretanto, a orientação sexual não é definitivamente decorrência necessária da sexualidade biológica, não se constituindo, qualquer desvio desta última, doença ou perversão moral, como já foi e é ainda proposto.
Homens e mulheres podem ser atraídos pelo mesmo sexo (homossexualidade); pelos dois sexos (bissexualidade); por nenhum dos sexos (assexualidade); por crianças (pedofilia); por animais (bestialismo); por objetos inanimados, etc. Ainda que a atração heterossexual seja a tendencialmente dominante. As circunstâncias determinam circunstancialmente ou não a atração sexual.
Da interação sexual entre o homem e a mulher dependeu o desenvolvimento da humanidade. Nas últimas décadas, tem avançado, ainda que não em forma geral, com dificuldade e com eventuais recuos, o reconhecimento do direito democrático dos indivíduos de exercerem seus impulsos sexuais, forem quais forem, nos limites impostos pelo respeito aos seres e objetos de seus desejos.
Um pedófilo não deve ser discriminado por sua orientação, tendo o direito, comumente negado, de satisfazer sua inclinação sexual de múltiplas formas, desde que não seja com as crianças – literatura, bonecos infláveis, etc. [RT, 17/01/2016.]
Tabula rasa
A “Teoria da Identidade de Gênero”, de viés irracionalista, impugnou esse consenso científico. Simplificando, ela propõe o desconhecimento da dualidade sexual biológica masculina e feminina, substituindo-a por uma identidade original de “gênero”.
Para além dos órgãos sexuais, todos os seres humanos, ao nascerem, seriam fundamentalmente idênticos. A diferenciação em homens/masculinos e mulheres/femininos seria devido às influências culturais. O sexo seria uma determinação cultural e não biológica.
Os recém-nascidos seriam uma espécie de tabula rasa. Porém, devido à tradição cultural, a criança nascida com um pênis teria sido historicamente criada como homem, um ser do sexo masculino.
E a criança nascida com uma vagina teria sido criada como mulher, um ser do sexo feminino. Portanto, crianças nascidas com um pênis ou com uma vagina teriam sua sexualidade determinada essencialmente pela educação. O gênero da criança se deveria dominantemente à cultura.
Essa concepção tem permitido, em alguns países e regiões, que os pais, que veem uma dissociação entre o sexo e o gênero de um seu filho ou filha, possam legalmente intervir com medidas educacionais, psicológicas, médicas, cirúrgicas, etc.
Para dissociá-los de seus marcadores biológicos de sexualidade, pênis ou vagina, ainda na infância e na pré-puberdade. Intervenções médicas e outras que têm resultado, há décadas, em graves sequelas, ressentidas pelas crianças, pré-adolescentes e adolescentes quando adultos.
O suicídio de David Reimer
David Reimer (1965-2004) foi o primeiro e mais célebre caso de redesignação sexual. Devido a um acidente com seu pênis, quando de circuncisão, foi criado como menina desde bebê, tendo seus testículos extirpados e recebendo tratamento hormonal, procedimentos médicos sugeridos pelo citado John Money, que supervisionou a experiência por longos anos.
Em torno dos nove anos, Reiner passou a assumir-se como homem, sofrendo tentativas reparadoras cirúrgicas e hormonais de sua masculinidade, com penosas sequelas físicas e psíquicas.
Aos 38 anos, David Reimer se suicidou, tendo deixado um relato publicado anteriormente sobre suas adversidades com a intensão de pôr um fim a tais procedimentos, antes da idade adulta. No que, como vemos, fracassou.
A “Teoria da Identidade de Gênero” defende, como vimos, que genitores que veem ou sintam uma filha no corpo de um filho, ou vice-versa, possam e devam implementar, em geral em forma irreversível, ablações de órgãos sexuais, tratamentos hormonais, interrupções da puberdade, etc.
Em palavras simples, redirecionar, com recursos médicos, psíquicos e cirúrgicos, a orientação sexual da criança, antes mesmo que ala chegue à puberdade. Ou seja, antes que atinja o amadurecimento sexual e a maioridade que lhe permitam decidir sobre seu corpo.
Os programas e iniciativas de redesignação sexual precoce são logicamente apoiados pelo complexo hospitalar-farmacêutico.
Essas intervenções intempestivas são defendidas eventualmente por pais, adultos e autoridades públicas como necessárias à saúde físico-psíquica de crianças sem capacidade efetiva de decidir sobre elas.
Estranhamente, as comunidades ocidentais favoráveis à “Teoria da Identidade de Gênero”, que defendem, com um ardor talibã, o direito dos pais à mutilação dos filhos, são em geral os mais fervorosos críticos da ablação não apenas do clitóris que ainda hoje sofrem centenas de milhares de meninas através do mundo.
Imperialismo revolucionário
J. Biden tem-se pronunciado em forma dura contra os governadores conservadores ianques que estão proibindo intervenções na sexualidade de crianças e de adolescentes antes da maioridade, devido ao caráter irreversível e às graves sequelas desses tratamentos.
Proibições acompanhadas, comumente, de medidas homofóbicas e retrógradas. Mas não devem reclamar, os que deixam a bola picar na pequena área! Nos anos 1990, antes da virada identitária do Partido Democrata, o senador J. Biden votou contra o casamento homossexual. [MARIE CLAIRE, 2022.]
A multiplicação incessante dos gêneros atualmente propostos exigiria a literal liquidação do binarismo biológico sexual homem-mulher. Os indivíduos seriam livres, portanto, para exigirem, além do direito inarredável de praticarem livremente suas orientações sexuais, o reconhecimento legal como seres em tudo idênticos ao gênero-sexo aos quais se identificam.
Não se trata, portanto, do simples e indiscutível direito de registro nos documentos de identidade para superação de constrangimentos. Um travesti não apenas obteria registro de identidade com um nome de mulher, se transformaria em uma mulher.
Um homem que, em um determinando momento, decida definir-se como mulher, deveria ser tratado legalmente como tal pelo Estado, assumindo como única diferenciação, não necessariamente explicitada, ser mulher transgênero, ou trans.
Portanto, teríamos, no mínimo, dois gêneros de mulheres, a transgênero ou trans e a cisgênero ou cis. Na última classificação estariam as mulheres ajustadas psicológica e sexualmente às suas determinações biológicas, superlativamente dominantes.
O mesmo ocorrendo com os homens, agora divididos em trans e cis.
Essa construção ideológica de identidades abandona o porto seguro das reivindicações pelos direitos de expressão e defesa de todas as orientações sexuais, para navegar os mares do absurdo.
Adotada em regiões do mundo liberal-imperialista, suas propostas naufragaram e naufragam inevitavelmente contra os escolhos do mundo real.
E, sobretudo, ela permite que a direita e a extrema-direita aproveitem-se dela para reforçarem a agitação conservadora e a intolerância entre a grande população para com as comunidades e práticas sexuais ditas não ortodoxas.
Doce prisão
O mundo real ocupou-se de revelar os absurdos dessas propostas. Desde 2021, em Nova Jersey, nos USA, permite-se que homens, que se definam como mulheres, cumpram pena em presídios femininos, de convivialidade e regimes menos duros em relação aos masculinos.
Demi Minor, homem que se definiu mulher trans, condenado à prisão perpétua por assassinato, exigiu e obteve o direito de ser encarcerado em cela com duas outras detentas, que engravidou em relações consensuais. O que ensejou o fim de tal prática. [GAZETA DO POVO, 2023.]
Tem-se registrado frequentes atos de violência contra prisioneiras, de transexuais aprisionados em prisões femininas, com destaque para os estupros. [CATRACA, 2018.]
No Brasil, presos condenados por violação se declaram habitualmente homossexuais para terem direito ao espaço protegido garantido aos gays. Poderão optar por presídios femininos, caso aquele direito seja reconhecido no Brasil, como se tem reivindicado. [DORNELLES, 2020.]
Com atletas homens se auto-definindo como mulheres trans, avança a proibição de federações desportivas de que eles participem de competições femininas – natação, ciclismo, vôlei, basquete, atletismo, levantamento de peso etc.
Decisão apoiada em suas vantagens relativas quanto às atletas mulheres. É a realidade biológica objetiva se impondo sobre os devaneios político-ideológicos. [CNNBRASIL, 2023.] J. Biden tem se pronunciado contra essa discriminação.
Nas competições mistas, as mulheres são tendencialmente prejudicadas devido à desigual conformação, em diversos aspectos da fisiologia feminina em relação à masculina, – altura, força, velocidade, etc. A diferença entre o maior valor feminino e masculino no levantamento do peso supera os cem quilos.
Lideranças feministas têm denunciado a autodefinição de homens como mulheres como outra intervenção-invasão masculina no espaço feminino, pondo mulheres em situação de inferioridade, de insegurança, diluindo reivindicações históricas específicas às mulheres – maternidade, amamentação, etc. [DORNELLES, 2020.]
Em defesa da família
Os desdobramentos discursivos da “Teoria da Identidade de Gênero” têm alcançado pináculos do absurdo, como a proposta de que homens também podem ser mães!
Proposta assustadora! Que me desculpe meu pai! Eu não o trocaria, jamais, pela minha querida mamãe! E não creio que meu filho aceite igual troca!
Mas ninguém se assusta, já que não há esse perigo. Essa proposta da “Teoria da Identidade de Gênero” tenta apenas disfarçar em forma malandra o fato de que “homens transgêneros” são mulheres biologicamente em tudo iguais às demais, caso mantenham o sistema reprodutor. [FLEURITY, s.d.]
Essas formulações esdrúxulas permitem, como proposto, que a extrema-direita galvanize e, mesmo, aterrorize, sobretudo a população social e culturalmente mais atrasada.
Em geral, a direita conservadora propõe como objetivo, dos governos que apontam de esquerda, a aplicação forçada e geral da “Ideologia de Gênero”. Em outras palavras, de pretenderem impor a manipulação arbitrária da sexualidade dos recém-nascidos e crianças pequenas, entre outras ações diabólicas. Trataria-se, assim, de um ataque à “família”.
E vai argumentar contra essa doutrinação conservadora, no contexto da difusão das sandices revolucionárias da “Teoria da Identidade de Gênero”, que conhece o apoio da grande mídia.
E, não raro, servindo-se da denúncia da “Ideologia do Gênero”, setores políticos e religiosos de extrema-direita conquistam o consenso contra direitos do exercício e da expressão plena, sem restrições, das múltiplas orientações sexuais.
Atacam o direito de casamento, de adoção, de expressão artística, etc. das comunidades homossexuais. Assim, a vanguarda da revolução da identidade de gênero contribui fortemente, no seu autismo individualista, ao recuou de avanços de direitos civis duramente obtidos.
Apoiados no compreensível e sadio medo de pais, avós, etc., hétero e homossexuais, de que seus filhos e netos pequenos e pré-púberes recebam como educação sexual os desvarios da “Teoria da Identidade de Gênero” [homens parindo e menstruando; filhos apenas de mães; escolha aleatória da orientação sexual, etc.], políticos reacionários conseguem barrar a necessária educação sexual nas escolas públicas.
Na Florida, acaba de ser proibida a educação sexual e a divulgação da “identidade de gênero” nas escolas públicas, à exceção da informação sobre a reprodução. [G1, 19/04/2023.]
Idealismo e Materialismo
As origens da “Teoria da Identidade de Gênero” são múltiplas e complexas, salvo engano, carecendo de uma crítica marxista estrutural. Epistemologicamente, ela se insere no conflito histórico entre o idealismo e o materialismo, com a defesa de um mundo determinado subjetivamente, autônomo à materialidade dos fenômenos objetivos.
Um mundo onde a vontade e a decisão individuais constroem uma materialidade fantasmagórica.
Nele, eu sou o que pretendo ser. Ponto final. Amigo medievalista [gay] tem-se perguntado se, na “Teoria da Identidade de Gênero”, não teria a “influência do platonismo e do cristianismo nesse desrespeito” a um corpo “que teria de se ajustar à ideia?”
A “Teoria da Identidade de Gênero” materializou-se nas entranhas de facções liberais pequeno-burguesas centradas em suas sofrências, universalizadas e projetadas por sobre e para além das necessidades de todos que lhes são estranhos.
Nessa dissolução do mundo e de suas contradições sociais objetivas, minha subjetividade se materializa como o epicentro do mundo, como o alfa e o ômega da minha história, que nasce e se encerra em mim.
Elevo-me a metro do mundo, senhor da fala, transformando-me em um estranho Prometeu que se aquece eternamente no fogo que produz, despreocupado com a humanidade que deveria iluminar.
Constituo-me como profeta e libertador do meu próprio umbigo divinizado. Associo-me apenas a uma infinidade de outras individualidades auto-centradas, que me espelha e se espelha em mim.
A “Teoria da Identidade de Gênero” vive obcecada pelo protagonismo que abomina associação ou identificação que arranhe o meu empoderamento singular.
Desemboca, portanto, na impossibilidade constrangedora de assinalar, mesmo que seja apenas com uma letra, os infindáveis gêneros singulares que emergem incessantes em suas especulações fantasiosas, elevados ao status de natureza humana.
Negando-se a usar o alfabeto mandarim, agrega um + onde deveria colocar um ∞. Atualmente, os gêneros catalogados já superam os sessenta! Todos com seu programa próprio, singular e irredutível. [ABCNews, 13.02.2014.] A unidade do mundo social é dissolvida pela singularidade infinita.
Função Político-Social
A função político-ideológica conservadora da “Teoria da Identidade de Gênero” se registra quando suas reivindicações fantasmagóricas, próprias às classes médias liberais, ocupam o centro da atividade militante de esquerda e de organizações se reivindicando do marxismo.
Consolidam-se, assim, o programa e as reivindicações de segmentos sociais voltados sobre si, que ignoram e desprezam às necessidades materiais das classes trabalhadoras, assalariadas, marginalizadas, etc., que não as atingem.
Insuficiências econômicas e sociais dramáticas que comprometem patologicamente todos os aspectos da existência humana – físicos, subjetivos, psíquicos, afetivos, sexuais, etc.
Classes sociais exploradas das quais dependem a emancipação social e a superação tendencial de todas as opressões, sem excessões.
Facções das classes médias que vivem suas opressões, em geral sem contradições maiores, caso bem situadas socialmente.
Através do mundo dito desenvolvido, temos banqueiros, generais, juízes, primeiro-ministros, governadores, senadores, prefeitos, sindicalistas, etc. homossexuais masculinos e femininos.
Nesse universo, a homossexualidade se constitui como um nicho mercadológico do capital. [TRAVEL365, 2023.] E a pecha social que eventualmente conhecem constitui opressão não classista, a anos-luzes da classista, sofrida pelos trabalhadores, assalariados, marginalizados de todos os gêneros, opressão da qual o capital depende estruturalmente, não podendo viver sem ela.
A análise científica exige a definição da interdependências e hierarquização dos fenômenos sociais.
A “Teoria da Identidade de Gênero”, parte do câncer identitário, realiza um enorme estrago político e social. Não apenas no Brasil, galvaniza sobretudo jovens das classes médias, com destaque para os universitários, com importante peso relativo nas organizações de esquerda.
Em geral, essas organizações, com limitados vínculos com as classes trabalhadoras, abandonam o difícil objetivo de organizar-se por local de trabalho, junto aos oprimidos. Constroem, ao contrário, com sucesso, coletivos “negros”, “feministas”, etc., formados sobretudo por estudantes.
Coletivos que definem suas próprias políticas e reivindicações, sob o pretexto da autonomia sectorial.
Uma reorientação que permite realizar, com o voto das classes médias, o sonho dourado do eleitoralismo atualmente vicejante na esquerda marxista brasileira: eleger parlamentares pagos regiamente pelo Estado.
Revolucionários que o capital gosta
Uma frente estudantil de organização política que, ao menos, até há pouco, se assumia como marxista-revolucionária, propõe, para o 59 Congresso da Une, uma campanha nacional que defenda a “centralidade” da reivindicação de “cotas” universitárias para a “população trans”.
Ou seja, privilégios no ingresso na universidade pública aos bissexuais, assexuais, homossexuais e todos os demais LGBTQIAPN+.
O que torna semi-leprosos os jovens do sexo masculino e feminino ditos cis! Aquela frente estudantil propõe todo o pacote da “Teoria da Identidade de Gênero”.
Com destaque para a irresponsável defesa de liberalização dos “procedimentos médicos para a transição de gênero” para “crianças” e a “participação” de homens que se definam como mulheres [“mulheres trans”] “nas competições esportivas” femininas. Imaginemos um Maguila trans em uma competição de boxe feminino! [Afronte, 2023/07/10.]
Essa adesão à pauta neoliberal “cotista” cobre com um verniz progressista o abandono miserável da luta histórica pela universidade pública, gratuita e de qualidade para todos, sem exceções. Reivindicação democrática que tem como corolário a estatização de todo o ensino superior privado.
Programa de concretização possível, ainda mais em um país riquíssimo como o Brasil. Entretanto, tal proposta exigiria o deslocamento de ingentes recursos públicos para a satisfação da efetiva democratização no ensino. Recursos utilizados pelos governos atuais e anteriores para satisfazer e alavancar os grandes, médios e pequenos interesses privados.
As cotas, ao contrário, distribui recursos já alocados para a universidade pública, em incessante regressão diante do ensino privado, sobretudo controlado pelo capital internacional.
Permitam-me agregar a essas ponderações as recordações e perplexidade de quem já foi, no passado distante, militante universitário que se pretendia marxista-revolucionário.
Em 16 de junho de 1969, fui preso, em operação noturna, com a companheira Sandra Machado, já falecida, pela Brigada Militar, que nos parou disparando, felizmente para o alto, três tiros.
Nosso crime: estarmos pixando com sprays, a modernidade da época, nos muros da entrada traseira da PUC-RS, além do “fora Rockefeller”, reivindicação então conjuntural, a exigência da “estatização da PUC”.
Ela era parte da defesa do ensino público universal das organizações revolucionárias estudantis e da própria UNE. Passei dez dias preso, sofremos processo na Justiça Militar, que pediu condenação de dois anos de cárcere para mim e para Sandra. Não houve exagero na repressão.
A luta pela universidade para todos era proposta da esquerda temida pela ditadura militar, já que capaz de mobilizar centenas de milhares de jovens.
Fica por conta do atual “admirável mundo novo”, que literalmente nos assombra, ver militantes que se reivindicam da revolução defendendo pauta do grande capital e do imperialismo, que agradecem comovidos, em associação com o atual governo Lula-Alckmin, tais reivindicações.
E a ciranda segue
A centralidade do mundo do trabalho e suas reivindicações gerais e específicas são enviadas às calendas. Salta-se por sobre a necessária luta contra o caráter classista, patriarcal, sexista, etc. da linguagem.
Uma luta que expressa tendências profundas da luta de classes, latentes nos padrões populares da fala. Questões que a linguista Florence Carboni e eu abordamos, há anos, no livro A Linguagem escravizada: língua, história, poder e luta de classes. [CARBONI, MAESTRI, 2003.]
Avança-se, ao contrário, como pauta da linguagem de “gênero” a proposta de modificações arbitrárias e artificiais da língua, estranhas e opostas à imensa maioria da população. Como a defesa do uso, para uma linguagem mais inclusiva, em lugar dos pronomes “ele” e “eles”, os novos pronomes neutros “elu” e “ile”, entre tantos outros.
Tudo isso enquanto, em respeito ao mundo evangélico, não se enceta luta dura em defesa das multidões de mulheres pobres estropiadas, feridas e mortas devido à criminalização e não inclusão do aborto nas prestações dos SUS.
As reivindicações da “Teoria da Identidade de Gênero” avançam de vento em popa, sem qualquer mobilização efetiva pela libertação imediata e incondicional das multidões de mulheres presas por venderem uma trouxa de maconha para sobreviverem à miséria.
Libertação de uma população prisional inofensiva que aterroriza as classes médias, que entretanto compra e fuma seus baseadinhos. O que é, diga-se de passagem, um direito de todos.
Para não falarmos no verdadeiro genocídio silencioso de travestis pobres que se pratica impunemente no Brasil, sem qualquer mobilização real das ditas esquerdas.
Sem esquecer, finalmente, da escravidão assalariada a que, no presente governo, como nos anteriores, é submetida uma imensa parcela das trabalhadoras e trabalhadores brasileiros, de todos os gêneros imagináveis, pela decretação arbitrária do salário mínimo em 1.320 reais, uma pequena parcela do seu real valor. Uma outra mega carícia ao mundo do capital, pequeno, médio, grande.
Mário Maestri
Historiador, autor de: Revolução e contra-revolução no Brasil. 1530–2018.