O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) terá a chance de reavaliar três contratos de concessão para distribuição de energia elétrica durante seu mandato, que vai até 2026.
Acordos desse tipo foram firmados com empresas como a Enel, que deixou milhões de clientes sem luz por até seis dias após um temporal que atingiu São Paulo no último dia 3.
Esses contratos foram negociados pelo governo federal na década de 1990 e tem prazo de validade de 30 anos. A partir de 2025, eles começam a vencer.
Em cada vencimento, o governo pode decidir se vale a pena renová-los, se pretende abrir concorrência para contratar uma nova empresa ou se ele mesmo vai prestar o serviço.
Caso Lula concorra à reeleição e vença, ele terá que tomar decisão sobre outros 16 contratos, incluindo o da Enel em São Paulo, que vence em junho de 2028.
Até 2031, ao todo, perdem a validade 20 contratos de distribuição de energia. Essas distribuidoras atendem 55,6 milhões de unidades consumidoras. Os dados são do Ministério das Minas e Energia (MME).
De acordo com a Constituição, o governo federal é o responsável pelo serviço de energia no país. Historicamente, ele repassou essa responsabilidade para empresas privadas por meio de concessão.
As companhias prestam os serviços e o governo federal fiscaliza pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel).
Para estudiosos e trabalhadores do setor elétrico, no entanto, o apagão em São Paulo é uma prova de que esse modelo não deu certo. Para eles, portanto, o governo precisa repensar as concessões e avaliar inclusive a possibilidade de reestatizar serviços.
“Não estamos falando de desrespeitar contratos. Os contratos foram respeitados, mas estão vencendo”, ressaltou Ikaro Chaves, engenheiro eletricista, ex-funcionário da Eletrobras e membro do governo de transição de Lula. “É decidir agora se quer renovar ou não.”
Problemas frequentes
Chaves ressaltou que o apagão em São Paulo não é o primeiro problema registrado com concessionárias de energia no país.
“Em 2021, um estado inteiro ficou sem energia por 21 dias. Foi o Amapá. Há dois meses, houve um apagão que deixou um terço do Brasil sem luz. Em Goiás, isso acontece com frequência”, disse ele.
A economista Clarice Ferraz, pesquisadora Associada do Grupo de Economia de Energia do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretora do Instituto Ilumina, ratificou que os problemas são frequentes. Ressaltou que o modelo do contrato firmado entre empresas e governo leva a eles.
“No contrato atual, os custos das empresas com manutenção não são repassados para tarifa de energia. Então, a concessionária deixa no poste parafuso enferrujado, que depois pode derrubar uma linha inteira. Já quando ela põe um ativo novo, joga isso no cálculo da tarifa e aumenta o retorno dele”, exemplificou.
“A manutenção é uma obrigação da concessionária, mas a Aneel não fiscaliza.”
Para Ferraz, o governo precisa, sim, considerar a possibilidade de reestatização da distribuição energia no país. Até porque, no final das contas, é o Estado quem vai ter que garantir o fornecimento de energia à população.
“Eu sou partidária da reestatização.”
Ela lembrou que, na Europa, governos foram obrigados a custear parte das contas de luz após aumentos recentes nos preços dos combustíveis ligados ao início da guerra entre Rússia e Ucrânia.
Em junho, por exemplo, o governo francês concluiu a reestatização da maior geradora de energia elétrica do país, Électricité de France (EDF), para realizar investimentos e tornar o país menos dependente do gás importado da Rússia.
Tendência mundial
Segundo monitoramento realizado pela entidade holandesa Transnational Institute (TNI), houve 1.658 casos de “desprivatização” de serviços no mundo desde o ano 2000.
De acordo com dados tabulados pelo TNI, de 2000 a 2010, 417 casos ocorreram – média de 37 por ano. Já de 2011 a 2021, foram 1.227 casos – média de 111 por ano, alcançando um teto de 196 casos só durante 2016.
Ainda segundo o TNI, reestatizações de empresas de energia são as segundas mais comuns no mundo, atrás somente das empresas de água. Foram 393 na área de água e saneamento e outros 383 na área de energia. Juntas, são 46% do total.
A busca pela melhora dos serviços e
pela redução de custos são os motivos mais frequentes para a reestatização, de acordo a TNI.
Brasil na contramão
Apesar disso, ainda antes do apagão em São Paulo, já deu indicativos de que pretende renovar os contratos das concessionárias de distribuição. O MME realizou um consulta pública para estabelecer critérios para essas renovações, que seriam feitas com contrapartidas de empresas para melhora da qualidade do serviço e expansão dele.
“As contrapartidas sociais por parte das concessionárias como critério para prorrogação devem visar a melhoria na qualidade do atendimento aos brasileiros e brasileiras, que tanto priorizamos no MME, sob as diretrizes do nosso presidente Lula.
Tais contrapartidas devem buscar a eficiência energética e, principalmente, os benefícios à população com aumento dos investimentos por parte das distribuidoras para melhorar a qualidade dos serviços do segmento de distribuição para a população”, declarou o ministro Alexandre Silveira, em nota publicada no site do MME em junho.
A nota não leva em conta a possibilidade de relicitação ou reestatização.
O prazo para contribuições na consulta pública acabou no final de julho. Em setembro, levando em conta as sugestões recebidas, o MME encaminhou ao Tribunal de Contas da União (TCU) um nota técnica com diretrizes para a renovação. Ficaria a cargo do tribunal de contas, portanto, renegociar os contratos com base nessas diretrizes.
“Sabemos que o governo pretende renovar, estabelecendo alguns critérios, mas acho que o que foi colocado pelo apagão de São Paulo demonstra que o modelo de privatização ele é um modelo falido”, criticou Fabíola Antezana, diretora do Sindicato dos Urbanitários no Distrito Federal (STIU-DF) e integrante do Coletivo Nacional dos Eletricitários (CNE).
Parlamentares também pedem mais debate. O presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), disse que a renovação precisa ser feita com regras fixadas pelo Congresso.
“Não se pode renovar a concessão delas sem licitação, sem aprovação legislativa”, afirmou Lira, na terça-feira (7).
“Me diga onde, constitucionalmente, tem a previsão de que o TCU virou corte conciliadora. Onde está escrito isso? Não dá para fazer legislação em consulta. Temos um poder legislativo.”
Tramita na Câmara um projeto para criar regras para a renovação de contratos de distribuidoras de energia. Ele foi encaminhado neste ano à Casa pelo deputado João Carlos Bacelar (PL-BA).
Também prevê contrapartidas como a manutenção do desconto de até 65% na conta de luz das famílias de baixa renda (a tarifa social) e a garantia de investimentos para a universalização do sistema de distribuição até 2030.
O MME deve se pronunciar para sobre as concessões de distribuidoras de energia. Até a publicação desta reportagem, porém, o órgão não havia enviado seu pronunciamento.
Novas regras
Ildo Sauer, professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (USP) vê a possibilidade de criação de mecanismos de regulação da formação de custos e preços e de desempenho de qualidade nas renovações dos contratos com as concessionárias.
Para ele, o modelo atual de contratos fracassou.
“Mesmo tendo o melhor conjunto de recursos naturais, tecnologias e humanos, temos tarifas entre as mais altas do mundo e qualidade precária. A recomendação é repensar o fracasso”, disse.
Já Nivalde de Castro, professor do Instituto de Economia da UFRJ e coordenador do Grupo de Estudos do Setor Elétrico (Gesel), disse que é preciso separar o que houve em São Paulo da discussão.
Para ele, não necessariamente é preciso romper o modelo atual para dar conta de quedas de energia causadas por temporais, mas sim incluir nesses acordos a previsão para investimentos contra danos que podem ser causados por eles.
“Determinações de políticas públicas devem ser adotadas, mas serão possíveis no âmbito do marco regulatório desses contratos. Por exemplo: a liberação de recursos para a criação de linhas subterrâneas”, afirmou.
Vinicius Konchinski
Entenda: as empresas não abrem mão de parte do lucro para investimento e manutenção e ainda querem subvenção da União e recursos para a criação de linhas subterrâneas.
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