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O GURU

GURU FASCISTA: autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho

Para se compreender a ideologia compósita do fascismo é mais importante estudar  figuras marginais da literatura e da ciência, mas que tiveram acolhida pública em suas épocas

Sempre há um tipo intelectual que cultiva teorias excêntricas, posições reacionárias e oportunistas, dissimuladas de progressistas e científicas. Antonio Gramsci, bête noire do bolsonarismo, cita o caso de Lombroso que distorcia evidências empíricas para chegar a resultados extravagantes.

Para se compreender a ideologia compósita do fascismo é mais importante estudar essas figuras marginais da literatura e da ciência, mas que tiveram acolhida pública em suas épocas, do que os nomes que ingressaram no cânone literário. Achile Loria, hoje um autor desconhecido, foi um exemplo para Gramsci.

Tais autores não eram necessariamente ignorantes, podiam até mesmo ser enciclopédicos como Oswald Spengler, grandes especialistas como Carl Schmitt ou filósofos a um só tempo profundos e tolos como Heidegger. Sua ignorância não era formal e sim substancial.

Como estes exemplos revelam, o senso comum não é resultado da baixa escolaridade. Na esfera do cotidiano todos nós somos seres humanos “comuns”, onde agimos imediatamente, sem reflexão.

Juristas, oficiais superiores, professores universitários, lideranças políticas e científicas ofereceram seu respaldo ao fascismo porque não vinculavam seus estudos e sua profissão ao conjunto da sociedade.

A  maioria se arrependeu ao menos publicamente só depois que sua opção política violou aquela esfera do cotidiano mediante a guerra, privações materiais ou perseguições.

Mas há um tipo intelectual que não integra apenas o lodo primitivo de racismo e ódio em que germina o fascismo. Ele é um filósofo agitador como Goebbels.

O Livro da Filha do Guru

Heloisa de Carvalho cedeu a Henry Bugalho um depoimento sobre o seu pai, o guru do presidente da República. O  livro se fundamenta em três tipos de fontes: 1. jornalísticas; 2. testemunhos da própria depoente; 3. boatos.

No primeiro caso repetem-se acontecimentos de uma vida financeiramente indisciplinada envolta em pequenos escândalos e processos criminais.

O guru dirigiu a escola Júpiter de astrologia e uma revista; teria furtado dinheiro de sócios e alunos; e teria criado ódio mortal ao PT depois que um vizinho advogado do partido tinha lhe negado ajuda.

Do segundo universo de fontes a filha constrói uma história de abandono familiar; distanciamento de um pai ausente e egocêntrico; tentativa de suicídio da mãe; internações psiquiátricas; orgias sexuais; uma estadia junto a círculos conservadores na Romênia; poligamia e rituais macabros.

Sobram até acusações para os irmãos que permaneceram fiéis ao pai ou à marca que ele representa.

Por fim, os boatos são a parte mais interessante do livro. O diz-que-diz pode ser uma matéria do historiador pelo papel que cumpre para forjar uma imagem de uma época ou de um personagem.

No caso em questão o próprio guru alimentou alguns. Uma  tentativa falhada de transmigração de alma depois de se emparedar numa parte da casa teria exigido uma ação dos bombeiros.

A suposta participação no Partido Comunista Brasileiro e num inverossímil sequestro político ajudam a compor a trajetória de alguém que combate aquilo que conheceu por dentro.

Fragilidades

O livro argumenta que o guru lê alguns comentadores de filosofia, jamais os textos originais; não compreende conceitos básicos; não possui diploma acadêmico algum para ser um filósofo, embora tenha dado aulas na PUC do Paraná; e que ele usa em proveito próprio o gramscismo e a guerra cultural que atribui aos seus inimigos.

Com exceção deste último, infelizmente os demais argumentos são frágeis. Não é o diploma  que confere a alguém o epíteto de intelectual. Também é difícil saber se o protagonista do livro leu tudo o que cita e nem como leu.

De qualquer maneira esta é uma questão bizantina pois não revela o âmago do problema: importa o que o guru faz com os textos que cita e não se o seu uso é legítimo academicamente.

Apesar do subtítulo o livro não desvenda a “face ainda oculta” do guru. O advérbio de tempo é revelador: as 100 páginas em que transcorre o relato propriamente dito não dizem muita coisa que já não sabíamos.

No entanto o livro não decepciona por qualquer falha de pesquisa dos autores. Simplesmente o que há para descobrir talvez não importe.

Intelectual do Pós – Tudo

Não foi ele quem disse que não havia filosofia no Brasil, que todos os relatos são legítimos, não existe verdade nem objetividade e que a História não é uma ciência. Mas ele percebeu que aquelas afirmações descortinavam uma nova maneira de operar no debate público.

Ele acusou os acadêmicos de mero proselitismo ideológico, mas para ele a traição dos intelectuais não foi a indicada por Julien Benda porque o guru não é conservador e não propõe uma volta à ciência pura e desinteressada. Sua mensagem é clara: “Eu vim para foder com tudo”.

Para Benda o intelectual podia até ser partidário desde que defendesse o universal, a verdade e a justiça. Bobbio lembrou que isso seria mais fácil a alguém de esquerda porque o intelectual da direita não pode admitir que por trás de honra e pátria defende interesses pessoais e de sua coterie.

O fascista não esconde o que pensa. Sua mentira está no todo e não nas partes necessariamente. Há nele o vil interesse, sem dúvida, mas também uma fé quebrada, um conjunto desconjuntado que é proclamado quando os intelectuais da esquerda abandonam o universal e se tornam técnicos do saber contando o número de artigos de seus curricula.

O Guru não é um tanto um falsário quanto um farsante. Ele pode falsificar dados ou cometer plágios, mas é a sua mera pretensão à universalidade, logo desfeita pela falta de metodologia, disciplina e trabalho conjunto que o diferencia.

Um Movimento (Anti) Cultural

O bolsonarismo apresentou-se desde o início como um movimento “revolucionário” e não conservador. Mas a sua natureza declarada sempre foi cultural graças à percepção que seu ideólogo teve. Numa guerra (cultural) não há espaço para acordos.

Não é casual que o líder político e o ideológico tenham traços comuns nas suas biografias. Um é um intelectual ressentido porém obstinado. Suportou a marginalidade acadêmica e o ridículo.

O outro um oficial preguiçoso cujo ápice da carreira foi o baixo clero do congresso. Um se apresentou como o intelectual anti elite; o outro foi o homem simples contra o sistema. Goebbels disse que Hitler era grande e ao mesmo tempo simples.

A união de um intelectual com um anti intelectual pareceria absurda. Mas o guru oferece ao bolsonarismo uma ideologia no sentido mais comum do termo: uma justificativa. Ele não planeja o encontro do povo com a filosofia. Ele confere estatuto “teórico” ao senso comum, à “filosofia do homem médio”, incoerente e desagregada.

Diferentemente de Gramsci não há nenhuma ideia de encontrar no senso comum um “núcleo sadio” através de uma ação recíproca entre a teoria e a concepção popular.

É o contrário: trata-se de elevar a crença do homem comum ao estatuto de uma filosofia fake. Como indivíduos empíricos todos permanecem onde estão enquanto o fascismo confere dignidade pública aos preconceitos outrora recônditos.

Muito antes da internet foi necessário que alguém os travestisse com uma linguagem pseudo teórica. O anti intelectualismo adora pelo avesso o intelectual da elite. Por isso recorre à “filosofia”.

Técnica

A técnica consiste em oximoros, generalização de casos teratológicos, uso de ideias contraditórias e incoerência narrativa. O britânico Theodore Dalrymple oferece um exemplo. Médico simplório que foi trabalhar numa prisão ele encontrou o sucesso mediante artigos sensacionalistas para o público de tabloide.

Nos seus textos ele salta de uma análise de Shakespeare a um quadro de Vermeer; da crítica ao marxismo e ao feminismo ao diálogo com uma adolescente promíscua; de Tocqueville para a história de crimes do casal West que torturou, violentou e matou várias pessoas ao longo dos anos.

É como se aqui alguém misturasse num parágrafo Leila Diniz, Iberê Camargo, Gilberto Freyre e Chico Picadinho.

A cada descrição chocante ele insere uma “explicação” ou uma “culpa”: imoralidade, valores de esquerda, feminismo, liberdade sexual, a substituição do “modelo de papai e mamãe” pelo Estado etc.

Segundo ele quando uma filha adolescente dos West apareceu grávida no hospital ninguém quis investigar a causa porque seria “moralismo” machista. Não apresenta nenhuma evidência para estabelecer essa relação. Ela é apresentada como fato.

Quando precisa explicar que o casal West teve uma infância abandonada em lares desagregados, diz que a falta de uma família padrão não desculpa as decisões que os indivíduos tomam quando adultos, afinal os West eram maldosos mas seus filhos sobreviventes se tornaram pessoas “normais”.

No entanto páginas antes ele tinha estabelecido que o fim do modelo familiar “papai e mamãe” e o Welfare State eram responsáveis pelas orgias sexuais que os West faziam com desconhecidos e até com os próprios filhos.

O jornalismo por depender umbilicalmente da propaganda sempre abriu suas páginas para este tipo de “sabedoria” do homem comum. Paulo Francis já atacava acadêmicos e políticos brasileiros como ignorantes e corrompidos enquanto colecionava referências de almanaque para parecer erudito.

Seu leitor masoquista da classe média se comprazia quando Francis “descobria” um novo restaurante em Nova York mas não revelaria o endereço para que nenhum brasileiro aparecesse por lá.

Sua coluna era recheada de leituras de orelha de livros recém publicados nos Estados Unidos e xingamentos; citações de bula de remédio, registros de exposições de arte e comentários sobre ópera.

Como sói acontecer nesses casos fazia parte do currículo declarar-se um conservador que fora trotskista na juventude e exaltar a democracia desde que sem a plebe ignara.

Concluindo

A linguagem desses intelectuais visa mais que impedir qualquer diálogo com uma massa de vitupérios. Seu escopo é ameaçar e silenciar.

“Fascismo não é impedir alguém de dizer, é obrigar a dizer”, diz em outro contexto Barthes[vii]. Você até pode falar com o “homem comum”, mas jamais com o guru. Ele é simplório, mas se considera grande.

Lincoln Secco é professor de história na USP. Autor, entre outros livros, de Gramsci e a Revolução (Alameda).

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