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O Iluminismo fora da Europa

O iluminismo fora da Europa

Não há dúvida de que os filósofos iluministas acreditavam que estavam elaborando conceitos e princípios universais, ou seja, diretos e válidos para toda a humanidade, transformando-os em ideais a serem realizados, princípios regulativos de qualquer ação prática futura inspirada por eles.

O modelo dessa nova forma de pensamento filosófico é representado pelo mote kantiano: “Age apenas segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”. Trata-se, como é sabido, de um imperativo categórico formal, mas é, ao mesmo tempo, regulativo de qualquer futura lei universal.

Enrique Dussel utiliza os princípios regulativos universais de maneira não formal, mas material, isto é, colocando “o princípio de produção, reprodução e desenvolvimento da vida humana de cada sujeito ético em comunidade” como conteúdo do princípio de conduta moral.

Este princípio poderia não ser totalmente viável, mas continua sendo para os navegantes como a estrela polar, o ponto de referência, praticamente inatingível, mas indispensável para orientar a sua direção, ou melhor, a própria ação prática.

Esta nova orientação do comportamento prático, que concilia a formalidade do imperativo categórico com a materialidade da vida humana, advém da experiência existencial, tornada filosófica, de quem pensa e age moralmente na exterioridade do sistema dominante vigente, quer dizer, fora do Centro do Mundo (Estados Unidos, Europa, Japão).

A experiência e o pensamento de Enrique Dussel, que utilizarei como instrumento para este ensaio, vêm da América Latina, a primeira vítima do sistema colonial europeu, ou melhor, a vítima que permitiu, com sua exploração, a fundação da Modernidade, ou seja, com o saque de suas riquezas naturais (metais preciosos), a acumulação originária de capital, que se deu sobretudo com o uso de mão de obra escrava violentamente arrancada da África.

Enrique Dussel indica claramente quais são os princípios normativos da política: “Os princípios normativos essenciais da política são três. O princípio material obriga a cuidar da vida dos cidadãos; o princípio formal democrático determina o dever de agir sempre em conformidade com os procedimentos da legitimidade democrática; o princípio da viabilidade limita, igualmente, a operar apenas para o possível (aquém da possibilidade anárquica, e além da possibilidade conservadora)”

A meu ver, os princípios normativos da política devem ser inspirados nos princípios regulativos universais de origem iluminista, mais precisamente, os princípios normativos subsomem neles os princípios regulativos universais, a ponto de assumirem uma natureza ética em si mesmos: tornam-se princípios éticos do comportamento comum, isto é, coletivo e, depois, passam a ser princípios morais do comportamento individual.

A pátria do Iluminismo foi a França, que era simultaneamente uma potência colonial escravista. Os políticos iluministas agiram para tornar esses princípios regulativos princípios normativos, de modo que qualquer ação prática pudesse encontrar consenso universal.

Assim, a “Declaração dos direitos do homem e do cidadão” (1789), baseada em um texto de La Fayette, com a colaboração de Jefferson, e inspirada no pensamento de Montesquieu, Rousseau e Voltaire, foi entendida como lei universal e como tal é reconhecida.

Os princípios na base dessa declaração, Liberdade, Fraternidade e Igualdade, foram, nos últimos dois séculos, o fundamento de qualquer declaração civil ou constituição estatal.

A “Declaração Universal dos Direitos Humanos” (1945), da Organização das Nações Unidas, também se inspira nesses princípios regulativos, portanto eles foram o fundamento de uma legislação universal e de todas as ações de libertação de qualquer forma de opressão. Foram e, com certeza, serão para qualquer outra ação de libertação, tanto individual quanto coletiva, que será colocada em prática no futuro.

A “Declaração de Independência dos Estados Unidos da América” (1776) também foi inspirada em princípios regulativos, considerados universais, que derivam do pensamento de John Locke, o qual, aliás, considerava legítima a escravidão, pois julgava a propriedade privada superior à própria liberdade. Alguns destes princípios são os mesmos da futura “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, como a igualdade e a liberdade, mas foi acrescentado o reconhecimento de que todo o ser humano tem direitos inalienáveis, como a vida e a felicidade.

Mas no momento da elaboração da “Constituição dos Estados Unidos da América” (1787) um evidente esquecimento fez com que aqueles princípios regulativos universais fossem ignorados e a escravidão não fosse abolida, mas simplesmente regulamentada (ver artigos I, II e V).

A esta altura, convém fazer algumas perguntas: Por que a escravidão não foi abolida? Talvez os escravos não fossem considerados iguais aos seus proprietários brancos?

A resposta mais óbvia é sim, tanto que, mesmo após a abolição da escravidão, em 1865, a segregação racial não acabou e ainda hoje, mais de 250 anos depois da “Declaração de Independência dos Estados Unidos da América” e mais mais de 150 anos após a abolição da escravidão, a segregação não foi completamente superada, como ensina o atual movimento Black Lives Matter. Susan Buck-Morss apresenta uma própria interpretação em relação ao escasso conhecimento dos acontecimentos ligados ao mundo dos excluídos ou dos oprimidos:

“Quanto mais especializado o conhecimento, mais avançado o nível da pesquisa, mais longa e venerável a tradição acadêmica, mais facilmente fatos conflitantes são ignorados. Deve-se notar que a especialização e o isolamento constituem um perigo também para novas disciplinas, como os estudos afro-americanos”.

Mas é apropriado fazer outra pergunta mais radical do que as anteriores: no que consistia a desigualdade dos escravos em relação aos seus proprietários?

A resposta é óbvia e evidente: eram negros, quer dizer, não eram brancos, ou melhor, não eram europeus, pois só os europeus se consideram verdadeiros brancos, negando as evidências de que os asiáticos (chineses, coreanos e japoneses) também são brancos.

Parece que os princípios regulativos universais só se aplicavam aos europeus e não a todos os seres humanos, então não eram universais, ou melhor, eram universais em teoria e não na prática, isto é, na sociedade, na política e na economia.

A própria reprodução da vida não era igual entre brancos e negros. A “Declaração de Independência dos Estados Unidos da América” foi negada pelos mesmos cidadãos que tinham se declarado independentes da pátria-mãe inglesa.

Uma primeira conclusão teórica pode ser extraída: no momento em que os princípios regulativos universais do Iluminismo estavam prestes a se tornarem princípios normativos da política, os três princípios normativos, como os indicou Enrique Dussel, não foram reconhecidos: o princípio material foi fortemente restrito à simples reprodução da força de trabalho escrava, enquanto o princípio formal foi totalmente negado, já que os escravos não tinham dignidade jurídica, exceto como mercadorias, e o princípio da viabilidade, porque foi realizada a única possibilidade existente que era a de considerar os seres humanos como coisas.

Extraio outra consideração do belíssimo livro de Susan Buck-Morss: a liberdade como valor universal, afirmou-se no momento de máximo desenvolvimento da escravidão, então, tal fenômeno, em plena expansão, condicionou sua realização prática. De fato, Susan Buck-Morsse reporta um fato interessante: 20% da burguesia francesa vivia de economia escravista[viii], portanto, era liberal na pátria e escravista nas colônias.

Dada a hegemonia cultural dos Estados Unidos sobre a cultura mundial, esses acontecimentos são muito famosos e conhecidos. Muito menos conhecida é a história de quem realmente implementou os princípios regulativos universais da “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”: os haitianos.

Muito pouco se sabe sobre a pequena ilha de Hispaniola na cultura europeia. Sabe-se, sem dúvida, que existem duas pequenas nações caribenhas: o Haiti e a República Dominicana.

Mas não é amplamente sabido que essas duas pequenas nações compartilham a ilha de Hispaniola. Escrevi “nações”, porque nas duas partes da ilha se falam línguas diferentes: o francês no Haiti e o espanhol em Santo Domingo.

É óbvio pensar que no Haiti se fala francês, porque foi uma colônia francesa, mas o Haiti tem uma particularidade que o difere de outras colônias francesas, junto com Martinica e Guadalupe, era a única colônia francesa onde a escravidão era permitida.

É verdade que em 28 de março de 1792 e em 4 de fevereiro de 1794, a escravidão foi abolida também nas colônias, como consequência da “Declaração dos direitos do homem e do cidadão”, embora Robespierre tenha se recusado a assinar o decreto de abolição da escravidão.

Como nos Estados Unidos, os princípios regulativos universais permaneceram assim na teoria, na prática a segregação escravista permaneceu inalterada até 1º de janeiro de 1804, quando os franceses abandonaram a ilha de Hispaniola devido às más condições naturais, às quais, ao contrário, os escravos africanos eram mais facilmente adaptados do que os europeus.

Os proprietários brancos conseguiram, em nome da autonomia legislativa, não fazer cumprir as decisões da pátria-mãe francesa de 1792 e 1794, então a liberdade e a igualdade eram princípios regulativos não universais, aliás subordinados à autonomia legislativa das colônias, assim como tinha acontecido nos Estados Unidos, onde alguns Estados da Federação não tinham respeitado os princípios regulativos de Liberdade,

Felicidade e Vida. Portanto, os princípios regulativos universais tinham um limite nas decisões autônomas de cada realidade política: na prática, o caráter universal deles era negado. Naturalmente, eram negados os princípios normativos da política como Dussel os entendia. Os princípios regulativos universais eram negados pela classe dos proprietários franceses de escravos africanos.

No Haiti, porém, os escravos negros não aceitaram pacificamente permanecer escravos, sabiam que na França a condição deles de escravidão tinha sido abolida e, por isso, desejavam que aqueles princípios regulativos universais fossem postos em prática na terra deles.

Na realidade, eram as vítimas da escravidão que desejavam transformar a teoria universalista do Iluminismo francês em prática política, econômica e social.

Este movimento de libertação da escravidão encontrou um líder na figura de Toussant Louverture, um ex-escravo, que lutou contra a França revolucionária e contra Napoleão, tentando obter a independência do Haiti da França, porque a independência era a única condição política que permitiria a libertação dos escravos africanos.

A França iluminista, revolucionária, jacobina e napoleônica reprimiu sangrentamente esse movimento de libertação, até que a própria natureza da ilha, as doenças, como a febre amarela, e o clima tropical dizimaram as tropas francesas e obrigaram a pátria-mãe do Iluminismo universal a deixar a ilha e a permitir que Jean-Jacques Dessalines, sucessor de Toussant, que tinha morrido na prisão na França, transformasse os princípios regulativos universais em princípios normativos universais práticos.

Nascia, assim, o primeiro território verdadeiramente livre da América, tendo em conta que a escravidão ainda vigorava nos Estados Unidos. A revolta das vítimas da escravidão fez dos princípios regulativos universais instrumentos da luta de classes. Estava realmente começando a era das lutas de classes em nome dos princípios do Iluminismo.

De fato, a luta de classes é baseada na exclusão dos princípios regulativos universais de liberdade, igualdade e fraternidade, como intuíram alguns revolucionários franceses mais radicais.

A lei econômica do mercado, por outro lado, baseia-se na exclusão da retribuição de todo o valor produzido pelo trabalhador. Marx percebeu que o trabalhador excluído da propriedade dos meios de produção era externo ao mercado, aliás, seu corpo era externo, enquanto sua força de trabalho era um elemento fundamental da produção da riqueza.

Então, a exterioridade é a categoria fundadora da exclusão e quem é mais externo do que o escravo africano? Ele vive longe, fora, do mundo eurocentralizado.

A legalidade que os proprietários franceses de escravos africanos queriam impor não se inspirava nos princípios regulativos universais do Iluminismo, mas nos do mercado, que tende a esconder homens, relações e coisas.

Na prática, a intenção era legitimar a exclusão, a exploração e a negação da dignidade humana. A crítica dessa lógica jurídica é, portanto, também uma crítica da economia política na qual essa lógica se baseia.

Franz Hinkelhammert é muito claro neste ponto: “A legalidade absoluta é a injustiça absoluta. Isso não implica em nenhuma abolição da legalidade, mas sim na necessidade de intervir quando destrói a própria convivência humana. Essa legalidade na sua lógica é incompatível com a vigência dos direitos humanos”.

Assim, a revolta dos escravos africanos partia das condições de vida às quais foram forçados pelos proprietários franceses, os quais, com sua prática econômico-política anti-iluminista, estavam transformando a racionalidade dos princípios regulativos universais em formas irracionais de condições desumanas de vida para os escravos africanos.

A justificativa de uma legislação local autônoma é justamente uma forma de racionalização do irracional. A revolta dos escravos africanos, portanto, tinha como objetivo a abolição, mesmo violenta, dessas condições desumanas de vida, na prática os escravos africanos se rebelaram contra a própria condição de coisas, de mercadoria, de reificação da vida deles.

Os princípios regulativos universais haviam, inicialmente, oferecido aos escravos africanos uma perspectiva de libertação, mas a reintrodução da legalidade da condição de escravidão havia negado e reprimido essa aspiração universalista de libertação da escravidão e apenas o ato violento de rebelião os havia libertado dessa reconstituída legalidade jurídica opressiva e restituído a condição de vida digna de ser vivida, tendo sempre presente que o seu modo de vida condizia com a natureza tropical da ilha de Hispaniola.

Nas palavras do sociólogo Anibál Quijano descobrimos outro aspecto da revolução haitiana:

“A experiência mais radical acontece e não por acaso no Haiti. Lá, é a população escrava e ‘negra’, a mesma base da dominação colonial antilhana, que juntamente com o colonialismo destrói sua própria colonialidade do poder entre ‘brancos’ e ‘negros’ e a sociedade escravista como tal.

Três fenômenos no mesmo movimento da história. Embora destruída, posteriormente com a intervenção neocolonial dos Estados Unidos, a do Haiti representa também o primeiro momento mundial em que se unem a independência nacional, a descolonização do poder social e a revolução social”.

Anibál Quijano, ao jogar com o contraste entre “brancos” e “negros” pretende destacar que a libertação dos haitianos foi também a libertação do racismo europeu, ou seja, da convicção, elevada a ideologia, de que os “negros” eram tão inferiores a ponto de serem incapazes de receber um salário.

Os Estados Unidos da América, país fundado nos princípios do Iluminismo, intervieram para restaurar o colonialismo no Haiti, mas permanece a experiência vivida (Erlebnis)de ter negado o colonialismo com a própria luta de libertação e de independência, confirmando que a verdadeira descolonização ocorre na separação da Europa liberal e esclarecida.

Mas, como referido, o maior paradoxo consiste no fato de esta luta pela libertação se inspirar nos princípios regulativos universais do Iluminismo, que em si são tão pouco eurocêntricos, que os próprios europeus os negam.

Mas esses princípios regulativos universais também levantam a necessidade de uma reivindicação de justiça por parte das vítimas, que é substancialmente uma reivindicação política de justiça.

Enrique Dussel define a reivindicação política de justiça da seguinte maneira: “A ‘reivindicação política de justiça’ é a posição que o sujeito político adota (…) ao exercer um ato humano que normativamente respeitou os princípios que a política subsumiu da ética.

O sujeito político tem consciência normativa de praticar, dentro das limitações da condição humana, um ato de “reivindicação” de justiça, honestidade, em coerência com os princípios normativos que diz defender e praticar”.

Assim, valendo-nos da definição de Dussel, podemos considerar o ato de rebelião dos haitianos uma interpelação, um pedido de “reivindicação política de justiça” partindo justamente dos princípios regulativos universais, dirigidos não apenas aos proprietários franceses, mas a toda a humanidade, porque um único ato de libertação, isto é, de passagem da possibilidade à realidade fática livre e igual, é um ato de libertação comum e universal.

A ação pela libertação dos escravos africanos no Haiti demonstra que os princípios regulativos universais e a reivindicação de que eles se tornem princípios normativos da política são instrumentos críticos contra o sistema dominante.

As vítimas da escravidão exigiam a concretização da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, pois a partir desses princípios regulativos universais puderam criticar o sistema escravagista então existente.

O conhecimento dos africanos escravizados do Haiti de que aqueles princípios foram declarados reforçou reivindicação de justiça deles.

A libertação da escravidão foi historicamente o primeiro passo para reivindicar justiça para toda a humanidade. Refiro-me ao movimento de libertação das mulheres, que nasceu após a libertação da escravidão.

A experiência de libertação da escravidão tornou-se a arma dos movimentos femininos para a crítica ao sistema machista de exclusão. Neste caso também se pediu que os princípios regulativos universais se tornassem princípios normativos da política.

*Antonino Infranca é doutor em filosofia pela Academia Húngara de Ciências. Autor, entre outros livros, de Trabalho, indivíduo, história – o conceito de trabalho em Lukács (Boitempo).

Tradução: Juliana Hass.

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