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Sobre a produção de carnes

Brasil: produção de carne bovina

Um sistema que se apoia na tortura sistemática aos animais, também traz consequências graves para a saúde humana e para os tecidos ambientais

As carnes são o epicentro do sistema agroalimentar global. As áreas de pastagens somadas às que se voltam aos grãos para a alimentação animal correspondem a 70% de toda a superfície terrestre fora das geleiras e dos desertos.

A agropecuária é o mais importante vetor de erosão da biodiversidade. Um terço das emissões globais de gases de efeito estufa vem daquilo que comemos.

Anualmente, 92 bilhões de animais são criados para o consumo humano. A maioria são aves, que se concentram em espaços reduzidos, frequentemente em gaiolas e que, muitas vezes, passam a vida sem ver a luz do sol.

O espaço de movimentação de uma ave num ambiente destes é o de uma folha de papel A4.

E longe de ser uma contrapartida incontornável para que tenhamos alimentos de qualidade, a realidade é que a oferta de proteínas animais é muito superior às necessidades do metabolismo humano para uma vida saudável.

Este sistema, que se apoia na tortura sistemática aos animais, também apoia-se no uso de antibióticos em larga escala, com consequências graves para a saúde humana.

Abaixo, selecionamos uma bibliografia que busca exemplificar essa complexidade.

1.

Animal Liberation, de Peter Singer (1975).

O livro contribuiu de maneira decisiva para a emergência de movimentos sociais e políticas públicas voltadas ao bem-estar animal. Em sua nova versão, de 2023, mostra avanços importantes na pesquisa científica, na mobilização social e nas legislações, sobretudo europeias, mas denuncia também o caráter limitado do que se conseguiu até aqui.

Animais continuam sendo usados como base para a formulação de medicamentos e cosméticos: só na China, são 52 milhões, dos quais 129 mil primatas e 64 mil cães.

Mas é nos modelos alimentares que passaram a dominar o mundo a partir da segunda metade do século XX que se concentram as formas mais graves e massivas de agressão aos animais.

A marca fundamental da abordagem filosófica de Peter Singer vem do britânico Jeremy Bentham (1748-1832), o pai do utilitarismo.

A básica premissa filosófica desta corrente de pensamento é que prazer e dor são os móveis fundamentais da ação humana. O importante não é saber se os animais pensam ou podem falar. A pergunta fundamental é: eles sofrem?

A resposta afirmativa a esta pergunta faz Singer se insurgir contra o “especismo”, uma forma de discriminação contra quem não pertence a uma determinada espécie.

Desconsiderar o sofrimento animal por eles não falarem, por exemplo, seria o mesmo que infringir maus tratos a um bebê ou a portadores de alguns tipos de doenças neurológicas.

É aí que se apoia o princípio da igualdade entre todos os seres dotados de sensibilidade, humanos ou não humanos.

Isso não se reduz aos mamíferos, mas compreende também os peixes, os répteis e alguns invertebrados.

2.

Justice for animals. Our collective responsibility, de Martha Nussbaum (2023).

Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Chicago e uma das mais importantes expressões da filosofia política contemporânea, Martha Nussbaum tem duas ambições principais.

A primeira consiste em apresentar de maneira honesta, generosa e crítica as mais importantes correntes filosóficas que denunciam a maneira como as sociedades contemporâneas tratam os animais.

É sobre a base desta exposição crítica que Martha Nussbaum propõe que considerar os animais como coisas fere preceitos básicos de uma categoria ética fundamental: a justiça.

Mais que isso, é fundamental garantir-lhes as liberdades substantivas a partir das quais eles poderão florescer e realizar os potenciais de inteligência, sensibilidade, sociabilidade, imaginação, afeto, auto identidade, prazer e capacidade de brincar, específicos a cada espécie.

Isso vai muito além de saúde e alimentação. É uma filosofia que estende aos animais a ideia de que os seres humanos não são meios, mas finalidades irredutíveis a qualquer função instrumental.

É fundamental aprendermos a olhar o mundo com os olhos de criaturas diferentes de nós mesmos.

A segunda ambição do livro vem do trabalho conjunto que Martha Nussbaum desenvolveu com sua filha Rachel, acadêmica e ativista dos direitos dos animais, falecida precocemente aos 47 anos.

A ideia central é que os animais são individualmente titulares de direitos que podem e devem se apoiar numa espécie de Constituição, cujo alcance tem que ir além das fronteiras nacionais.

O livro mostra avanços importantes nesta direção, varrendo de forma exaustiva tanto a literatura científica como as publicações vindas das organizações da sociedade civil, como os relatórios da World Animal Protection.

3.

How to be animal. A new history of what it means to be humans, de Melanie Challenger (2021).

O paradoxo contido no título sintetiza a filosofia natural que guia o trabalho de Melanie Challenger, rigorosa historiadora das ideias, mas também ativista de direitos humanos, artista, broadcaster e prolífica criadora de vídeos e filmes em torno da relação entre sociedade e natureza.

Vem de muito longe, mas consolidou-se no século XVII, sobretudo no pensamento de René Descartes (1596-1650), a ideia de que não somos animais como os outros e que as virtudes que marcam nossa existência não derivam de nosso corpo, mas existem apesar de nosso corpo.

Nada exprime melhor o caráter destrutivo da relação contemporânea entre sociedade e natureza que o fundamento mais profundo de nossa auto identidade, ou seja, o fato de acharmos que não somos animais e concebermos o futuro (e nossas mais revolucionárias inovações tecnológicas) com a finalidade sempre de nos emanciparmos de tudo o que nos liga a nossa condição animal, com tecnologias que podem alterar até as moléculas da vida.

Na raiz desta visão está o erro de acharmos que há algo de não biológico em nós e que isso é o que temos de mais nobre.

E é por isso que vivemos sob a ilusão de que poderemos fundirmo-nos com as máquinas preservando nossa alma e nossa inteligência por por toda a eternidade, como preconiza, por exemplo Ray Kurzweil, cientista da computação e futurologista.

Ser humano é, antes de tudo ser animal, escreve Melanie Challenger.

A afirmação não tem nada de trivial. Ela denuncia a mistificação vinda do Vale do Silício e do transumanismo, segundo a qual estaríamos na iminência de um passo evolutivo em que superaríamos nossas restrições biológicas.

Mas “sem o corpo, conclui Challenger, a alma é uma abstração sem sentido”.

4.

Linking animal welfare and antibiotic use in pig farming – a review, de Rita Albernaz-Gonçalves, Revista Animals, 2022.

O trabalho contribui para enfrentar um dos mais difundidos preconceitos, quando se trata de bem-estar animal: o de que esta é uma preocupação fútil, diante da urgência de satisfazer as necessidades alimentares dos seres humanos.

Sua autora principal, Rita Albernaz-Gonçalves, médica veterinária e professora do Instituto Federal de Santa Catarina, é uma das principais estudiosas de uma consequência alarmante para a saúde humana da maneira como é hoje produzida a maior parte das carnes de suínos e aves: a resistência aos antimicrobianos. 70% dos antibióticos vendidos globalmente destinam-se aos animais.

Estes produtos, na esmagadora maioria das vezes, não são usados com os cuidados necessários para que não resultem em processos evolutivos que os tornam ineficazes para novas bactérias cujo desenvolvimento eles próprios favorecem.

No Brasil, os suínos recebem sete diferentes princípios ativos durante 73,7% de suas vidas. E, como mostram pesquisadores da Fiocruz, o controle e a transparência em torno destas tecnologias dificilmente poderiam ser mais precários.

O artigo de Albernaz-Gonçalves mostra que o sofrimento na criação suína (com animais enjaulados, vivendo uma vida monótona, impossibilitados de exprimir suas capacidades naturais e sistematicamente submetidos a maus tratos como castração e corte de rabo) e a seleção genética para que produzam mais carne em menos tempo, ampliam sua suscetibilidade a doenças.

Mais de um milhão de mortes foram atribuídas à resistência aos antimicrobianos.

Se nada for feito para enfrentar o problema, em 2050, serão dez milhões de mortes anuais, por causa deste problema.

5.

Current global food production is sufficient to meet human nutritional needs in 2050 provided there is radical societal adaptation, organizado por Berners-Lee, Kenelly, Watson, Hewitt, Lancaster, 2018.

Escrito por um grupo de pesquisadores da Universidade de Lancaster, o trabalho enfrenta o preconceito de que torturar os animais é o mal necessário para que a humanidade tenha alimentos de qualidade, sob um ângulo surpreendente.

Contrariamente a uma crença largamente difundida, o horizonte de que a humanidade precisa e vai precisar de cada vez mais proteínas não se apoia em evidências confiáveis.

A humanidade tem um consumo médio de proteínas de 81 gramas diárias per capita, diante de uma necessidade metabólica que não vai além de 50 gramas.

Os únicos lugares do mundo em que há déficit proteico são na África, ao Sul do Sahara, e algumas regiões asiáticas.

Esta constatação é fundamental, pois ela abre caminho para que a oferta global de carnes tenha por base uma alimentação animal que não concorra com a alimentação humana.

É o que permitirá que a oferta global de produtos animais venha de uma economia circular, cujo conceito central é o baixo custo de oportunidade do que se oferece para alimentar as criações e sem que haja a obsessão destrutiva por técnicas voltadas a produzir quantidades cada vez maiores de algo que vai muito além das necessidades metabólicas para uma vida saudável.

A pecuária bovina em pastagens naturais (cujos nutrientes os humanos não são capazes de digerir) bem manejadas é um exemplo desta economia circular.

A base da alimentação animal deverá se apoiar em “ecologicalleftover” (restos ecológicos). A orientação é compatibilizar bem-estar animal, satisfação das necessidades humanas e regeneração de tecidos ambientais que até aqui o crescimento agropecuário vem destruindo.

*Ricardo Abramovay é professor titular da Cátedra Josué de Castro da Faculdade de Saúde Pública da USP.

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