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Por um projeto de desenvolvimento social econômico baseado na saúde e no sanitarismo

MORRO TAMBÉM É VIDA

O surgimento do novo vírus Corona, o COVID-19, e sua expansão pandêmica está fazendo com que governos e sociedade no mundo inteiro repensem sua forma de organização social e econômica. As dezenas de milhares de mortes, em curto período de tempo, desnudaram as fragilidades e a insuficiência dos sistemas de saúde nacionais, evidenciando-se a necessidade de fortalecimento e expansão.

Várias medidas emergenciais foram adotadas, como a compra de testes, ventiladores pulmonares e materiais de proteção individual. Na esfera econômica, programas de garantia de renda para a população em vulnerabilidade socioeconômica e de crédito para empresas foram anunciados.

Estas medidas visam combater os efeitos de curto prazo da coronacrise, no entanto, os efeitos de longo prazo não podem ser negligenciados. Este texto pretende abordar algumas questões e propostas que permeiam a esfera sanitária e econômica para combater os efeitos de médio e longo prazo dessa crise que certamente terá desdobramentos duradouros.

A relação entre o saneamento básico, o SUS e o complexo industrial da saúde: a tríade sanitária

De acordo com o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em 2018 apenas 53,2% da população teve acesso à coleta de esgoto, sendo que nas regiões norte e nordeste esse percentual fora de 10,5 e 28%, respectivamente.

Nas regiões centro-oeste e sul 52,9 e 45,2% da população teve acesso à coleta de esgoto, respectivamente, e na região sudeste o acesso à coleta de esgoto chegou a 79,2%. O saneamento básico, acesso à água tratada e coleta de esgoto, é condição sine qua non para a saúde da população; há regiões que a população sequer pode lavar as mãos (na região norte, em 2018, apenas 57% da população teve acesso à água encanada).

Quanto ao nosso sistema de saúde, composto por agentes privados e pelo Sistema Único de Saúde (SUS), temos o orgulho de ser exemplo, em certa medida, para muitos países. Pode-se dizer que o SUS é uma joia em processo de lapidação, um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo, gratuito e universal.

O Sistema barca a atenção primária, bem como os processos de média e alta complexidade, serviços de urgência, coordena ações e oferece serviços de vigilância epidemiológica e sanitária, e também de assistência farmacêutica.

É um primor; seu alcance, sua capacidade de coordenação e aplicação de políticas públicas e de ser instrumento de elevação de bem estar social são de extrema valia para o desenvolvimento social e econômico do Brasil, apesar de ainda haver espaço para melhorias e correções.

A pandemia do COVID-19 vem nos mostrando a importância de um amplo e eficiente sistema de saúde, à exceção de poucos países, como a China, Coreia do Sul e Alemanha, a falta de leitos, de equipamentos hospitalares, de equipamentos de proteção individual (EPI) e de testes para fazer frente ao risco de uma explosão do contágio do novo vírus é muito preocupante e faz com que os países com escassez desses produtos enveredem em uma disputa ferrenha com outras nações para obtê-los.

O Brasil não escapa desse quadro. A escassez de máscaras de proteção individual recomendadas para profissionais da saúde, denominadas N95, e do principal equipamento médico-hospitalar para atender os doentes de quadro mais grave do COVID-19, que apresentam insuficiência respiratória aguda, os ventiladores pulmonares faz com quem os governantes se estapeiem no mercado mundial para obter o máximo possível, que, devido à competição da super demanda, costuma ser muito pouco.

Tal quadro traz à baila a perda de tecido produtivo da indústria brasileira de equipamentos médicos hospitalares e odontológicos (EMHO), que é um dos segmentos que compõe o complexo industrial da saúde.

A indústria de EMHO teve seu início no Brasil na década de 1950[3], apoiada pela política de industrialização por substituição de importações (ISM). Em 1974 a produção nacional de EMHO já desenvolvia produtos com diversos níveis de sofisticação e respondia por 73% da demanda interna.

A partir da abertura comercial da década de 1990 e a subsequente valorização do Real, a concorrência dos fabricantes estrangeiros e a baixa diversificação e relativa morosidade do desenvolvimento de novas tecnologias por parte dos produtores nacionais impactou severamente a indústria brasileira de EMHO.

Esse processo resultou na perda de participação da indústria de EMHO na demanda interna e em sucessivos déficits comerciais. De acordo com Carlos Gadelha, atualmente o déficit comercial da área de saúde é da ordem de US$ 15 bilhões.

O crescimento do déficit comercial se exacerba justamente num período de expansão do SUS. O aumento da demanda do SUS por produtos que compõe o complexo industrial da saúde, em paralelo com a perda de densidade da produção nacional neste setor, indicam que essa estrutura não é sustentável para o modelo de sistema de saúde público que é proposto, de atendimento universal à população.

A dependência do SUS para com equipamentos médico-hospitalares e farmacêuticos é uma barreira para a expansão do sistema. A pandemia do COVID-19, a escassez de máscaras de proteção e de ventiladores pulmonares, evidenciam tal hipótese. A demanda por EMHO tende a crescer também pela mudança do perfil demográfico epidemiológico da população brasileira, com aumento da expectativa de vida.

Com esse pano de fundo, é mais que razoável que haja um programa de reindustrialização do complexo industrial da saúde que dê sustentação à expansão do SUS.

A demanda mundial por produtos do complexo da saúde está super aquecida e por conta da pandemia mundial esse quadro tende a se prolongar, uma vez que amplos investimentos na área da saúde serão implementados pelos governos ao redor do mundo, de maneira que a produção de EMHO se manifeste como setor de grande potencial de lucratividade, o que, por seu turno, tende a incentivar as firmas a expandir a capacidade produtiva e efetuar investimentos.

A oportunidade não é só de aliviar os déficits da balança comercial pela redução das importações, mas também pela expansão das exportações. Ainda há no país capacidade produtiva, ela só está ociosa em grande medida e a demanda super aquecida, que tende a continuar.

A união entre um plano de investimentos em saneamento básico, na expansão do SUS e de retomada e expansão do complexo industrial da saúde no Brasil, não só trará uma melhora na qualidade de vida da população pela questão sanitária, como também impulsionará a taxa de crescimento de longo prazo da economia brasileira, com geração de milhões de empregos e expansão da renda.

Além disso, haveria externalidades positivas para a economia, como o aumento dos dias trabalhados pelo trabalhador, dada a redução das enfermidades, favorecendo as empresas.

Proposta de utilização do BNDES como instrumento de fomento à tríade sanitária

O BNDES é a instituição que historicamente protagoniza o financiamento dos investimentos com maior potencial de geração de renda e emprego no Brasil, atuando nos setores industrial, de infraestrutura e de inovação, sendo o principal ator do mercado de financiamento de longo prazo no país.

No momento atual, levando em conta a emergência e o futuro da questão sanitária, é imperativo que o Banco seja utilizado para minorar gargalos das áreas da saúde e do saneamento básico.

Os projetos de investimentos nos setores supracitados necessitam de grande mobilização de capitais para serem efetivados, além de prazos dilatados. Geralmente, o financiamento desses tipos de projeto, imbuídos de risco elevado para os parâmetros do mercado, não é contemplado pelos bancos privados, que funcionam como qualquer outra firma capitalista.

Já o BNDES, por ser um banco público de desenvolvimento, uma instituição que não segue a lógica dos bancos privados, deve ser utilizado como instrumento de política pública, provendo financiamento para os setores mais dinâmicos da economia e sendo funcional ao desenvolvimento econômico e social do país.

O Banco tem larga experiência e corpo técnico muito capacitado para atuar na análise deste tipo de projeto.

Há ainda o benefício de o Banco poder dispor de fontes de recursos estáveis, como já o faz com recursos do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e do Tesouro Nacional (TN), possibilitando a compatibilização de sua estrutura patrimonial com a necessidade de prazos dilatados dos projetos dos setores industrial e de infraestrutura, reduzindo o risco de instabilidades financeiras.

Tratando especificamente da atuação do BNDES no financiamento do complexo industrial da saúde, setor que é muito heterógeno quanto à intensidade de tecnologia empregada na produção, sendo alguns segmentos muito intensivos em tecnologia e inovação, o Banco se manifesta como a instituição mais adequada para atender o setor.

Assim como o setor de infraestrutura, o complexo da saúde, geralmente, não atrai o interesse das instituições financeiras privadas.

O BNDES criou em 2004 o Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutico (Profarma) – posteriormente o programa foi estendido ao apoio à produção de equipamentos e materiais de saúde –  programa específico para financiar os investimentos na produção de EMHO, farmacêuticos e outros segmentos da área de saúde, além de atuar através das linhas tradicionais de financiamento para a compra de máquinas e equipamentos e investimentos industriais.

O objetivo do Profarma fora disponibilizar financiamento com condições mais favoráveis para setores da indústria considerados como estratégicos pelo governo federal. Posteriormente, o Profarma foi renomeado, passando a se chamar BNDES Finem – produtos de fármacos e medicamentos. Além disso, o Banco também já financiou diversas empresas do setor pelas linhas Funtec/Criatec, como a Magnamed, empresa que acaba de vender 6500 ventiladores pulmonares para o Ministério da Saúde

Recentemente, medidas como a que determinou a devolução antecipada dos recursos do TN e a criação da TLP, em substituição à TJLP, afetaram severamente a capacidade de financiamento do BNDES, ao reduzir o volume e elevar o custo dos recursos ingressantes no Banco. Há ainda a intenção de reduzir os repasses do FAT para o Banco.

Para que o BNDES possa assumir um papel como proposto ao longo deste artigo é necessário que essas medidas sejam revertidas, em algum grau. Em linha com o entendimento de Arthur Koblitz, algumas medidas devem ser adotadas para recuperar a capacidade de o BNDES atuar de forma mais contundente:

Arquivar as medidas que visam reduzir os repasses do FAT ao BNDES.

Adicionar outras taxas referenciais, como a SELIC, à TLP, objetivando reduzir o custo de captação do BNDES e consequentemente permitir financiamento à taxa mais vantajosas para as empresas.

Pode-se eleger setores prioritários, como setor de saúde e de infraestrutura, e aplicar subsídios de crédito, com taxas ainda mais vantajosas que a “nova TLP”.

A devolução dos empréstimos do TN deve ser suspensa. Na verdade, deve ser considerada a possibilidade de novos empréstimos do TN ao Banco.

Deve haver um esforço de coordenação entre o BNDES e os demais bancos públicos, sobretudo em relação ao financiamento dos investimentos em saneamento básico, área em que a Caixa Econômica Federal (CEF) tem expertise.

O complexo industrial da saúde, a expansão do SUS e o acesso ao saneamento básico podem ser o caminho para que seja implantado um projeto de desenvolvimento social e econômico que seja puxado pelo aumento da qualidade de vida da população, elevando o bem-estar social e reduzindo as desigualdades.

Para que isso seja possível, é necessário que haja um grande esforço de planejamento e coordenação entre o governo federal, ministérios que envolvam a área da saúde, da indústria e inovação, instituições de pesquisa e instituições financeiras.

Referências

PIERONI, J. P.; SOUZA, J. O. B.; REIS, C. (2010) A indústria de equipamentos e materiais médicos, hospitalares e odontológicos: uma proposta de atuação do BNDES. BNDES Setorial, n. 31, mar. 2010, p. 185-226.

GADELHA, C. G.; TEMPORÃO, J. G. (2018) Desenvolvimento, Inovação e Saúde: a perspectiva teórica e política do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 23 (6): 1891-1902, 2018.

CAPANEMA, L. X. L.; PALMEIRA FILHO, P. L.; PIERONI, J. P. (2008) Apoio do BNDES ao complexo industrial da saúde: a experiência do Profarma e seus desdobramentos.

KOBLITZ, A. (2020) BNDES precisa atuar diretamente como fonte de crédito para empresas na crise do coronavírus. Disponível em: <http://www.afbndes.org.br/kblitz08042020.htm>

MITERHOF, M. (2020) Os respiradores da Magnamed, o BNDES e o esforço coletivo da inovação. Jornal GGN. Disponível em: <https://jornalggn.com.br/artigos/os-respiradores-da-magnamed-o-bndes-e-o-esforco-coletivo-da-inovacao-por-marcelo-miterhof/>

GADELHA, C. G. (2020) “Não podemos ter um SUS com tamanha dependência”. O Globo Sociedade. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/coronavirus/nao-podemos-ter-um-sus-com-tamanha-dependencia-diz-pesquisador-da-fiocruz-em-meio-crise-do-coronavirus-24366231>

 Filipe de Castro Vieira- Possui graduação em economia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e mestrado em economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente é doutorando em economia pela UFF. Link de acesso ao currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/8654437594345629

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