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Canaviais da BR-324 começam a desaparecer, por André Pomponet

O MAPA DO FIM

Aqueles que transitam com frequência pela BR 324, no trecho entre a Feira de Santana e Salvador, costumam ter mapeada mentalmente toda a paisagem que se descortina ao longo da viagem.

Na saída da cidade se vê o núcleo do Centro Industrial do Subaé (CIS) na BR 324. Ali se sucedem dezenas de empresas – algumas delas multinacionais – com seu movimento de trabalhadores, com chaminés que expelem fumaça, com carretas e caminhões que manobram desembarcando matéria-prima ou embarcando produtos cujos destinos se espalham num leque amplo de municípios.

Quilômetros adiante as fábricas vão rareando: surgem plantações de eucalipto, trechos com pastos de capim viçoso e, nas imediações do viaduto da BR 101, multiplica-se o comércio típico das margens das rodovias: churrascarias, postos de combustíveis, estabelecimentos envidraçados que oferecem generosos cafés da manhã, com imensas placas publicitárias chamativas.

Naquele frenético trecho entre o Bessa e Amélia Rodrigues pontua a pequena agricultura. Pelas janelas dos veículos é possível ver plantações de coentro, cebolinha e couve, por onde se movimentam trabalhadores atarefados, sobretudo nos luminosos começos de manhã. Aquela produção vai abastecer entrepostos comerciais de Salvador e da Feira de Santana.

No longo declive que sucede Amélia Rodrigues é possível se deparar com um espetáculo ímpar: um trecho íngreme de Mata Atlântica foi poupado, oferecendo a visão de árvores imponentes, de um verde vívido, que projetam sombras generosas e úmidas.

Aqui ou ali se espicha, imponente, um dendezeiro que balança, elegante, ao sabor do vento, em meio à mata nativa. É rara essa demonstração de natureza pujante na centena de quilômetros tragada pela devastação em nome da civilização.

Canaviais – Um pouco mais adiante se observa um longo trecho da atividade econômica mais emblemática da rodovia: os canaviais que justificaram a expansão da colonização portuguesa em direção ao interior do continente.

Embora sua importância relativa tenha sido suplantada, há décadas, pela indústria petroquímica e segmentos afins, e pelas já mencionadas empresas no núcleo do CIS, a cana-de-açúcar segue como principal símbolo da BR 324.

Quem passa atento pela estrada, porém, percebe que a paisagem pode mudar nos próximos anos.

As antes bem cuidadas plantações estão sendo abandonadas discretamente, conforme nota quem examina com mais atenção.

No lado esquerdo há um trecho calcinado, com escassas plantas carbonizadas fincadas na terra coberta de fuligem.

No extremo oposto, num trecho amplo, onde antes se sucediam canaviais, viceja um pasto verde, brilhante, sob a luz matutina do sol. Nele, um rebanho de gado nelore mordiscava, com movimentos lentos, o capim abundante. São os primeiros sinais de que, ali, haverá mudanças na atividade econômica e, por consequência, na paisagem? Algumas pistas sinalizam nessa direção.

Ali próximo, nas imediações de Santo Amaro, o afamado cultivo da cana-de-açúcar deu lugar a extensas plantações de eucaliptos que vão se espichando e balançando ao vento.

Noutros trechos, também há pastagens onde antes havia apenas canaviais. A expansão da indústria do papel – que emprega o eucalipto como matéria-prima – e o declínio da indústria do açúcar parecem ter convergido, viabilizando a mudança num curto espaço de tempo.

Nas últimas décadas, na Bahia, o cultivo da cana-de-açúcar não teve relevância econômica como nos estados de Pernambuco, Paraíba e Alagoas.

Lá, os canaviais se sucedem interminavelmente pela BR 101, sufocantes, brotando quase no acostamento da rodovia, em maio à imensa monotonia característica da monocultura. Daí a natureza da transição por aqui, discreta e pouco notada, sem maiores solavancos.

Favelas e Baía de Todos os Santos – Seguindo viagem, a sequência de viadutos acinzentados, impregnados de fuligem, sinaliza para o viajante que ele mergulhou nos limites da Região Metropolitana de Salvador.

Às margens, sucedem-se povoados e distritos – inúmeras habitações precárias, de blocos vermelhos, muitas cobertas de telhas de amianto e alguns prédios de blocos aparentes e encanamento visível – e indústrias que despejam no ar densos rolos de fumaça.

Há também pastagens ralas, algumas atravessadas por dutos.

Mais adiante, a sucessão de imóveis precários vai se aproximando, se adensando, compactando-se em favelas. Trilhas íngremes, sem pavimentação, tortuosas, conectam a rodovia àqueles precários núcleos de povoamento.

Muitos moradores são os retardatários do êxodo rural cujo último espasmo aconteceu ao longo da década de 1990. Desafortunados, ficaram distantes dos espaços urbanos mais dinâmicos.

Aqui ou ali, em pontos específicos, o viajante consegue enxergar nesgas da Baía de Todos os Santos por trás de fileiras de eucaliptos.

Nas manhãs luminosas, de céu claro, o azul das águas do fundo da baía se destaca, muito vivo, em meio ao cenário temperado pelo cinza e pelo verde da vegetação.

Adiante, por fim, se envereda no frenesi periférico da capital. O habitualmente intenso movimento da BR 324 soma-se à rotina da população que circula pelas vielas, aguarda nos pontos de ônibus, mercadeja, compra, conversa despreocupada, trabalha, vive.

É evidente que os ambientes se transformam o tempo todo. Há mudanças, no entanto, que são mais profundas, estruturais.

No suceder de cenários da BR 324, os primeiros sinais dos estertores da cultura canavieira são, sem dúvida, a mudança mais essencial em curso.

André Pomponet é  economista, jornalista,  coluna no jornal Tribuna Feirense

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