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A HISTÓRIA DA ILUSÃO – Antonio Brasileiro

Escritor Antonio Brasileiro

Heidegger disse que a verdadeira linguagem é privilégio de uma minoria. Isto está registrado em mais de um lugar. E ele não incluía entre esses privilegiados senão poetas e filósofos.

Naturalmente que se referia aos verdadeiros poetas entre os poetas, e, quanto aos filósofos, àqueles que viam com a limpidez dos poetas. Podemos concordar ou não com Heidegger. Podemos mesmo achar admirável que um pensador de tal porte tenha se “arriscado” a tal ponto no elogio da poesia. Mas uma coisa há que registrar: poucas, pouquíssimas são as pessoas que querem saber de poetas nos dias de hoje.

Tempos de indigência, dizemos. Sim. São tempos de indigência. Para que, mesmo, poetas?

… Para que poetas… é de Heidegger. É o título de um daqueles seus belos ensaios sobre a criação poética. Foi tirado de um poema Hoelderlin, a quem Heidegger chamava de “o poeta dos poetas”. O verso de Hoelderlin (…wozu Dichter in durftiger Zeit? (…para que poetas em um tempo indigente?) tem 200 anos que foi escrito, mas o repetimos agora e ele nos parece atual. Sim, para que mesmo poetas?

Mais que isto: como explicar esse inextirpável amor que os poetas nutrem pelos seres humanos, a ponto de fazê-los crer que – eles, poetas – são indispensáveis?

Pois não é assim que esses seres de exceção, como já foram chamados, julgam lá no íntimo ser seu papel no mundo? Indispensáveis! Teríamos realmente como entender a persistência desta autoimagem ao longo dos tempos? “Privilégio”, “minoria” – como nos haver com uma terminologia deste teor? Haveria na verdade lugar, hoje, para uma tal interpretação?

Quem sabe! É talvez mesmo a história de uma ilusão. Mas uma ilusão que vem de longe. Antecede, como veremos, os antigos gregos. Está nos Vedas da Índia antiga:

Mara, o de firmeza inabalável, vencido uma vez por Agni-Brhspati e por Indra, mas jamais morto, vendo o príncipe Sidharta a meditar sob a árvore Bodhi em busca de sua total libertação, temeu perdê-lo para sempre e enviou suas hostes contra ele. Mara era extremamente poderoso, e os deuses protetores (protetores de Sidharta) fugiram, deixando o príncipe só. Só e sem outra defesa do corpo senão a de suas virtudes.

Trovões, relâmpagos, trevas, água e fogo, nada demoveu Sidharta de seu intento. Ele também era um de inabalável firmeza. Mara então debandou, os deuses protetores retornaram e celebraram aquela vitória. Livre então do Sansara e de tudo o mais que o ligava ao mundo, Sidharta – agora Buda, o “Desperto” – já podia repousar no Nirvana, a extinção mais plena. Que louco, em verdade, trocaria esta plenitude pelo convívio ordinário com os homens?

Mas não estava nos desígnios de Buda a libertação apenas pessoal, e ele hesitou: não seria esta a mais sutil tentação de Mara? ( Percebem, aqui, o cerne da ilusão? Continuemos.) Brahma Sahampati, um daqueles deuses protetores, aproximou-se de Buda para ajudá-lo. Tens de considerar, Buda – ele disse – , que algumas pessoas há com visão suficientemente clara para escutar e entender teus ensinamentos.

Buda, então, consentiu em permanecer.
É esta a história da ilusão.

A lição de Buda tem decerto o tom grandioso da religião; fala-se em nome de muitos e para muitos. A lição da poesia, por outro lado, sempre foi sussurrada; um que outro, apenas, está apto a ouvi-la. Contudo, a história pode ser a mesma. E, então, quando a encontramos mais uma vez naquele famoso mito narrado por Platão no livro sétimo da República, não é natural nos perguntarmos que força é esta que move um homem a voltar à caverna e a recusar o Nirvana?

Mais que isto: que certezas são aquelas que fazem este homem julgar correto tão-só seu modo de ver, a ponto de se arriscar perigosamente entre os ex-companheiros?

Bem pode ser a história da ilusão. O poeta e sua quixotesca autoimagem. Imbróglio de tensões raras vezes sonantes, possivelmente nunca. Para Graham Hough – isso, pelos anos 70 –, os tempos têm sido mesmo bem ruins para os poetas. Definitivamente, não o querem. Contudo, diz Hough (e aqui vai uma dessas dissonâncias tão salutares), é esse isolamento que mantém os poetas a salvo. Sua poesia fica “livre para fazer a única coisa que, nesses tempos, ela pode fazer, que é manter vivas algumas partes descuradas da experiência humana.” Wilhelm Dilthey, escrevendo quase cem anos antes de Hough, era mais incisivo ao abordar esse tema.

Para ele, o que fazia dos poetas aqueles seres tão distintos era a capacidade especial que tinham eles de perceber o valor e a conexão das coisas humanas. Não se trata, como podemos observar, apenas de manter vivas algumas partes descuradas da nossa experiência, como queria Hough, mas de revelar o porquê mesmo de estarmos aqui.

Causa espécie, é verdade, num tempo de descaso pela poesia, ver-se atribuir a ela o papel mais importante. A mais inútil das artes coroada dos mais belos louros. Quererá isto dizer do quão enganosa é toda existência extramental? Oscar Wilde, autor hoje um tanto fora do circuito, soube pôr os pontos em alguns ii. “A única desculpa de se haver feito uma coisa inútil” – ele disse – “é admirá-la intensamente.”

Admirar intensamente é o que, talvez, importe. Nietzsche soube bem ver o grau de dramaticidade desse saber sem préstimo. O artista, disse ele, pretendendo proporcionar um prazer, acaba não encontrando quem possa dele usufruir devido ao nível elevado em que se encontra. “Isto confere-lhe algo de patético”, diz Nietzsche, “porque, no fundo, ele não tem o direito de forçar os homens a experimentar o prazer. Se a sua flauta ressoa, mas ninguém quer dançar, poderá isso ser trágico?”

Não teríamos, hoje, os meios seguros para responder ao autor de Humano demasiado humano. Ele acreditava que sim; que aquilo era trágico. A “humanidade” corria perigo, assim como um alarme falso sobre um incêndio do museu do Louvre o deixara, certa vez, desassossegado. Mas – também nos perguntamos – poderá realmente ser isto trágico? Ou de algum modo passível de nos desassossegar?

Talvez, quem sabe, para demonstrar que não estou só, vou prosseguir alicerçando-me em outros autores.

Arnold Hauser, um historiador da arte, diz que a raiz deste destoamento dos poetas está no Romantismo. É a partir daí que o artista passa a não levar (ou finge não levar) em conta o público: uma falta de consideração, diz ele, que na realidade é só uma competição desesperada pelo favor deste público. Para este pensador, nem mesmo o artista de gênio se acha imune à força histórica.

Ao contrário, é justamente ele – esse artista –, por sua sensibilidade, que mais intensamente recebe os impactos. E, por isso, a partir de meados do século XIX e por todo o século XX, ele nada mais pôde fazer senão afastar-se. (A arte superior, oferecida aos homens inferiores, não podia ser mais nenhum manjar – isto é Nietzsche quem diz.) Hauser dirá que tal distúrbio é inerente à moderna sociedade industrial: a adaptação do indivíduo ao comportamento vulgar vai dispô-lo inevitavelmente ao espírito de massa; os fatos e as soluções, servidos às pessoas de forma a ser engolidos inteiros, explica Hauser, não deixam margem para a escolha. Mas isto não causa desprazer algum às pessoas. Pelo contrário, elas ficam contentes por não haver mesmo escolha: em tempo algum as massas foram mais capazes de julgar, nem jamais reclamaram de seu alimento espiritual já vir digerido.

“Se os produtos de arte que aceitaram outrora eram de melhor qualidade do que presentemente” – diz Hauser –, “era apenas porque esses produtos não foram, em princípio, feitos para eles.”

E eis, então, onde estamos. Para o poeta, uma grande injustiça. Nietzsche diria, como disse: algo de patético, não? Se uma flauta ressoa, mas ninguém quer dançar, onde se encontra aí a injustiça? Já outros nos diriam: Claro que não somos os mesmos. Por que haveríamos de ser? E, na verdade, quem estabelece esse “divisor de águas” não somos nós, mas os próprios poetas.
E então?

Não seria a isto que deveríamos chamar de “um certo mal-estar” (mal-estar, entenda-se, tão somente entre criadores e leitores de poesia)? Ou não é isto? Pois não já anda proliferando por aí, ao contrário, um certo bem-estar dos gloriosos – gloríolas de isopor, é bem verdade – e suas imensas gravatas coloridas?

Há pouco tempo um desses tipos que está sempre em dia com a última moda do intelecto tentou me convencer de que a diferença entre um bom poema e uma bula de remédio, por exemplo, era nenhuma. Produtos culturais ambos. E só. O que é ver tudo de binóculo, não é mesmo?

Mas, gloríolas de isopor ou não, persiste o incômodo. Vem dos tempos de Baudelaire, como propalam todos os livros. Um pouco acima já registrávamos a opinião de Hauser: sequer o artista de gênio escapa à força da História. Por certo que Hauser defende bem seu pensamento, mas não nos parece ter dito tudo. Ou pelo menos o essencial. Não cremos que a criação deva estar subjugada à História. A “realidade” histórica – e aqui citamos Gadamer – é também um texto que se faz necessário entender.

Ou truncar.

Alguém escreveu uma frase, trunquei-a e fiquei com o fragmento. O fragmento foi este: “O lado épico da verdade, a sabedoria, está agonizando.” Gostei do que fiz. Por certo que me arrisquei quando do emprego de termos como “verdade” e “sabedoria”.

Dizem-nos alguns: palavras fora de moda. Mas gostei de ter “descoberto” que a verdade tem lados, e um desses lados é o épico. Não sei bem o que é épico, mas imagino que algo mais intenso que nosso viverzinho rudimentar está por trás do seu significado. (Lembra-me agora Aquiles – o “Aquiles” de Homero – mais preocupado com o que iriam contar sobre ele os poetas futuros.

É uma bela imagem, sim. Uma mentira “poética”, possivelmente. Mas gosto de pensar que tenho estirpe, e que ela vem de longe. Que vem de Homero.) Mas – e a “sabedoria”, aquela outra palavra proibida a que nos referimos há pouco? Seu autor (o truncador de Walter Benjamin) disse que ela agonizava. A sabedoria, o lado épico da verdade, agoniza. Mas por que o disse? Declinava, então, daquele “privilégio” dos poetas de perceber o valor e a conexão das coisas humanas? Como conciliar essas, digamos, emoções?

A clareza é a cortesia do filósofo, escreveu Ortega. Eu não quis aqui filosofar, naturalmente. Apenas dizer algumas coisas. Quanto a ter sido ou não ter sido claro, não creio que isso tenha alguma importância agora. As perguntas e as respostas essenciais se formam e permanecem no silêncio. Como então ver clareza no silêncio?

A propósito, a título talvez de brincadeira, quero evocar aqui um daqueles achados que as leituras vagamundas às vezes nos presenteiam. Na Crítica da razão pura: Kant, falando certa vez da inconsequência de um procedimento de Locke, disse que este filósofo abrira assim “de par em par as portas à ‘extravagância’ porque a razão, quando tem direitos por seu lado, não se deixa facilmente sofrear por vagos incitamentos à moderação.”

A clareza pode ser, sim, a cortesia dos filósofos. Não sei se Kant pode estar, exatamente, incluído nesse rol, e temo que minha brincadeira não tenha ajudado muito nessa coisa.

Ou talvez porque seja mesmo a hora de concluir minha peroração. Dizer o que realmente penso disso tudo que estivemos falando.

A poesia, é claro, não salva coisa alguma. Nem está realmente aí para isto. Nossa intenção foi tão-só a de alertar para a possibilidade de um ainda maior enclausuramento dos homens na sua cegueira. Presos, por assim dizer, do lado de fora. Mas foi também nosso propósito reafirmar aos poetas que são eles que estão livres.

Se não podem (o que parece ser, no momento, uma verdade) reencaminhar seus semelhantes, ou pelo menos fazê-los ver a luminosidade do mundo, que não se deixem, pelo menos eles, se levar pelos ismos e des-ismos, apêndices de coisa-alguma tão encontradiços nas épocas fronteiriças. Nem se trata de franzir os cenhos; pouco mesmo vale este franzir de cenhos.

Mas que se não leve à macaqueação o saudável e saudoso lado sério da vida. O animal arcaico que é o homem foi como que sustado em pleno vôo; o risco (o traço) que deveria haver para representar sua trajetória tornou-se tão só um emaranhado de linhas confusas chamado presente.

Antonio Brasileiro

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