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Filósofa Marcia Tiburi lança livro destinado às mulheres e proibido para ‘homens burros’

Filósofa Marcia Tiburi

“O policial anotou a resposta, deu-lhe os pêsames e não buscou mais detalhes, o que para Chloé fazia parte do pacto de silêncio masculino que sustenta a violência contra as mulheres em qualquer tempo e lugar.” O trecho faz parte no novo romance da escritora e professora de Filosofia Marcia Tiburi, Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve, pela editora Nos.

Auto-exilada por quase cinco anos, decisão que tomou após ser ameaçada de morte, ela voltou ao Brasil, trazendo na bagagem seu novo romance. A primeira rodada de lançamento do livro aconteceu em Porto Alegre. Juntamente, sua participação na roda de conversa, promovida pela Secretaria de Mulheres do PT POA, dos Movimentos Populares do PT e Setorial LGBT.

Entre um compromisso e outro, Marcia conversou com o Brasil de Fato RS sobre feminismo, fascismo, machismo, exílio, literatura e a violência contra as mulheres.

Brasil de Fato RS – Qual é a sensação de estar voltando, de estar aqui na tua terra, de estar vindo lançar um livro e de fazer uma atividade como a roda de conversa “Desconstruindo o Fascismo, rumo a uma Porto Alegre feminista, antifascista, antirracista e antilgbtfóbica”?

Marcia – Primeiro eu estou muito feliz, mas tentando ainda elaborar os acontecimentos. Quando estamos dentro dos acontecimentos as elaborações da experiência não acontecem imediatamente. Você precisa de um tempo para digerir, ruminar sobre o que se passou.

Noto, por exemplo, que, quando saí do Brasil em 2018, foi justamente depois do lançamento de um romance que se chama Sob os pés, meu corpo inteiro, que foi indicado no ano seguinte aquele prêmio Oceanos, um prêmio bem importante da literatura de língua portuguesa. E era uma história de uma mulher exilada.

E aí fiz um lançamento desse livro em Maringá e recebemos ameaça de massacre lá, (por) pessoas do Movimento Brasil Livre (MBL), muito pouco criticado ultimamente, um movimento que tem como tática a agitação fascista. Também são (seus integrantes) especialistas em produzir criminalizações.

Em 2017, estiveram na produção da criminalização dos artistas, do Queermuseu, que fechou aqui no (centro cultural) Santander. Perseguiram o criador do Queermuseu, Gaudêncio Fidelis, perseguiram o Wagner Schwartz, aquele artista que fez uma performance no MAM com o bicho da (artista plástica) Lygia Clark.

Ele estava nu e eles criaram toda uma mistificação em cima da nudez desse artista.

Todas essas pessoas foram exiladas do Brasil. O Gaudêncio Fidelis vive em Nova York porque não tem segurança no Brasil. Foi uma pessoa muito atacada e vilipendiada.

Mas também é um exilado e foi acolhido nas universidades americanas da mesma forma que fui acolhida nas universidades francesas.

Saí em 2018 e fui para uma instituição que se chama City of Asylum, quem me chamou foi aquele homem que estava ao lado do (escritor) Salman Rushdie quando ele recebeu a facada.

Ele se chama Henry Reese e criou a City Of Asylum. Sabendo que eu era uma escritora perseguida, cujos eventos literários foram invadidos naquele ano de 2018, começou a me chamar para ir para São Petersburgo (Flórida), nos Estados Unidos.

Demorei muito para aceitar, mas quando não tinha mais condições de ficar aqui fui embora. Depois recebi um convite para a França, enfim…

Também estou escrevendo um livro sobre isso. Esse exercício de memória não é um exercício literário no sentido genérico, mas tem um caráter também de criar arquivo histórico. O arquivo histórico desse exílio é um trabalho que estou produzindo.

E esse romance aqui (Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve) para mim é muito significativo. Fiquei trabalhando nele do começo de 2020 até agora, ou seja, três anos.

Saí do Brasil com um romance e depois lancei vários livros, ensaios, mas sempre virtualmente. Não tivemos mais a oportunidade de encontrar com o público, até porque percebi que a minha presença era um motivo de perigo para as outras pessoas.

Em Maringá, 400 ou 500 pessoas foram revistadas pela polícia e eu e o jornalista que estava comigo naquela situação de evento literário. Eu e ele tínhamos entre nós um policial com colete a prova de balas e um rifle. Eles não invadiram, mas a polícia estava lá.

Se os homens lerem esse livro, se tiverem coragem, vão todos ter que fazer terapia.

Agora, quando volto, volto também com um romance. É um romance feministérrimo. Digo que, se os homens tiverem coragem de ler, vão ter que se enfrentar com uma coisa que não estão acostumados. Porque a literatura é muito feita para os homens.

E esse livro é escrito para falar a verdade sobre a vida das mulheres. Embora seja um livro bastante simbolista. É uma grande alegoria que criei aqui, uma personagem que me acompanhou durante vários anos.

É um livro para a gente se entender, falar do nosso imaginário. Para que possamos falar das nossas dores, dissabores, medos, angústias. Fiz a melhor literatura que poderia ter feito porque é um livro para nós.

E, claro, quando eu falo ´mulheres` também falo no sentido super genérico, mulheres cis, mulheres trans, mulheres travestis. Falo também dos trans homens, que são pessoas que tendencialmente sabem muito bem o que é também ser uma mulher, embora façam a transição. Penso nessas pessoas que não são o homem branco europeu, ou o homem que assume a posição dessa figura a ser desconstruída, que é o estereótipo do homem branco.

E que verdades são essas?

É um livro sobre violência. Falar sobre as mulheres é falar de violência. Violência física, violência simbólica, a violência dentro da qual nós estamos inseridas. E nossos afetos relacionados a isso, as angústias, os medos, os terrores.

E o enfrentamento disso tudo. Isso também faz parte do jogo, porque a coragem é uma virtude feminina. Se os homens lerem esse livro, se tiverem coragem, vão todos ter que fazer terapia, e talvez nós, mulheres, economizemos umas 30 sessões de terapia depois de ler esse livro. É a minha expectativa em relação a essa modesta obra de 300 páginas.

Durante a pandemia tu participaste do lançamento do Levante Feminista contra o Feminicídio. Como esse movimento influenciou nesse livro?

Influencia sim. Esse livro eu comecei a escrever em 2020, junto com a pandemia. E, no fechamento de 2020 para 2021, vem a ideia do Levante.

Nasce de um jeito muito simples. Escrevi uma postagem no Instagram: precisamos conversar sobre o feminicídio, por quê?

Porque o feminicídio é um núcleo duro da proposição patriarcal. É através da ameaça de morte às mulheres que o sistema se sustenta. E essa ameaça de morte se faz em gradações diversas, sempre tem a sentença de morte, mas ela se elabora.

São muitas violências e todas têm a ver com o extremo da morte, o extremo da violência que é esse assassinato, que algumas décadas pelo mundo afora vem sendo chamado de feminicídio, o crime com motivação de gênero em relação a uma mulher.

Naquele final de 2020 para 2121 teve o assassinato de sete ou oito mulheres no Natal. Teve aquela juíza que foi morta – ela tinha uma medida protetiva, abandonaram a medida e ela foi assassinada pelo marido na frente das três filhas.

E aquilo chamou muita atenção. Afinal de contas, também era uma agente da lei. Aí deu para ver que não é só a mulher em um extremo de vulnerabilidade que é ameaçada. Uma mulher que supostamente não seria vulnerável também é vulnerável.

Mulheres que fazem política, que sofrem violência política de gênero, que são ameaçadas de morte como é o meu próprio caso. Sou eu uma mulher vulnerável? Não, só que sim. Essa é a questão. Todas nós, de alguma maneira e em alguma medida, estamos na mira da matança patriarcal.

O patriarcado, como sistema, funciona nos ameaçando. Estamos sempre ameaçadas por todos os lados, de todas as maneiras, as físicas, as simbólicas, as domésticas, as públicas. A ameaça é uma categoria política hoje.

A ameaçabilidade é uma categoria política importante para analisar gênero, raça, classe, tudo isso. No caso das mulheres fica muito claro. Inclusive, pensando na história que vivemos nesse período de fascistização do Brasil, ficou muito mais evidente.

A ameaça foi uma tecnologia política e, sobre as mulheres, mais ainda. E as estatísticas pioraram.

Voltando ao Levante: lembro que a Vilma Reis (socióloga, defensora dos direitos humanos, das mulheres, negros e LGBT) lá da Bahia, fez um comentário nessa postagem.

A gente se telefonou e aí, naquele dia, éramos duas, no dia seguinte éramos três, em uma semana éramos 15, em três semanas éramos 100, e hoje somos mais de 1000 entidades feministas do Brasil todo.

E uma das coisas bonitas que tem o Levante, é que além de tudo que está acontecendo – Télia Negrão (militante feminista do Rio Grande do Sul) é realmente nossa referência master nessa história toda – tem essa coisa de ter juntado as mulheres do Brasil.

Há um encontro que antes não existia e por quê? Porque o núcleo duro do patriarcado está sendo exposto e é a matança das mulheres. É o mais profundo. E, claro, isso também escandaliza os homens, amedronta os homens.

Então, imagina essas mulheres todas aguerridas vindo à luz do dia, essas mulheres que deveriam ficar no subterrâneo da história, que deveriam nunca ter aparecido, de repente aparecem. De repente, são muito competentes como na CPI do MST.

Eles não esperavam que existisse gente competente na política porque os fascistas projetam a sua estupidez, a sua ignorância, a sua maldade, a sua incompetência, os seus interesses, nos outros.

Eles jamais conseguiriam imaginar que haveria gente mais inteligente, mais preparada, mais decente, mais honesta e, além de tudo, que mulheres pudessem ter essa competência.

Fico muito feliz de ver isso acontecendo. Este livro tem muito a ver com isso, porque é uma história que começa com o feminicídio. Minha heroína é filha de uma mulher assassinada pelo homem com quem ela vivia e dali se desenvolve a história toda.

Que não convém contar muito, mas é o desenvolvimento bastante alegórico de uma menina que vê na sua mãe assassinada na adolescência. É a história dela dos 13 anos para a frente.

E ela fica sozinha e essa é outra questão: o que acontece com os filhos das mulheres que são assassinadas?

Qual a responsabilidade do Estado nisso? Muitas vezes esses filhos vão até morar com o pai (assassino) se o pai não for preso. É trágico.

É pesadíssimo, porque é possível que a iniquidade desse gesto continue sendo naturalizada. Uma criança que perde sua mãe assassinada pelo pai ou companheiro e depois vai viver com o assassino.

Isto só é possível porque, para essa sociedade patriarcal, a vida das mulheres não vale nada.

Quando você vê esses movimentos pró-criminalização do aborto, por exemplo, eles são totalmente antifemininos, antimulheres. Não são nem antifeministas. São antimulheres.

Pregam o ódio às mulheres e esse ódio é naturalizado no patriarcado, que a gente chama de misoginia. As pessoas começaram a se impressionar, na época da fascistização, com o ódio. Nós, mulheres, conhecemos esse discurso de ódio desde sempre.

Quando não fomos vítimas de ódio?

É histórico. Para mim, quando fiz a denúncia do fascismo lá em 2015, escrever aquele livro Como Conversar com um Fascista, foi uma doce vingança.

Uma vingança poética e uma homenagem as nossas mulheres que são injustiçadas, ofendidas, maltratadas.

De alguma forma te aliviou a alma?

Total. Eu me diverti escrevendo o livro. Foi uma solidão muito bem vivida e guardei esse livro à sete chaves.

Porto Alegre foi a primeira cidade a receber Com os sapatos aniquilados, Helena avança na neve?

Sim, depois virão São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e outras cidades. Agora, estou no programa de proteção a defensores de direitos humanos.

É importante que a gente se mantenha nesse programa. O que aconteceu com a Mãe Bernadete foi horrível. Li uma matéria que ela saiu do programa de proteção. É um programa muito pequeno, ligado ao Ministério dos Direitos Humanos.

Katia Marko, Maria Helena dos Santos e Fabiana Reinholz

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