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Poesia de Alberto da Cunha Melo é o rendez-vous do sórdido com o sublime

ARQUIVO 23/01/2018 CADERNO2 / CADERNO 2 / C2 / USO EDITORIAL RESTRITO / Imagens do livro com a obra completa do poeta Alberto de Cunha Melo. Crédito: Cláudia Cordeiro Tavares da C. Melo

O volume de mil páginas provoca o primeiro impacto: como pode o pernambucano de Jaboatão dos Guararapes Alberto da Cunha Melo ter sido um poeta tão produtivo e copioso nos 65 anos em que viveu? Impacto ainda maior terá o leitor, habituado ou não à arte do romano Horácio (seu ícone e cânone), ao percorrer cada uma delas e nada encontrar que considere jaça.

Há ainda, no caso desta Poesia Completa, a inserção do gesto criador, do labor exaustivo do autor, permitido o acesso a poemas inacabados, esboços ou exercícios poéticos, alguns intocados há décadas: belos diamantes brutos, ainda não lapidados.

A poesia publicada em vida do autor foi louvada por críticos respeitáveis. Destaco dentre eles o poeta e professor paraibano Hildeberto Barbosa Filho, que parafraseou Johannes Pfeiffer em Introdução à Poesia: “devido à sua verdade, esta poesia é necessária; devido à sua beleza, é beatificante!”

Alberto foi sociólogo e jornalista competente e pontual, mas revelava que essas atividades apenas lhe serviam como fonte de sobrevivência e, algumas vezes, de leitmotiv de seus poemas. Uno e indivisível, é poeta, e a terceira pessoa do singular rege o verbo no presente do indicativo, porque sua poesia atravessa o tempo e ganha uma dimensão que, apesar de todas as honras e gratificações em vida, ainda carece de maior reconhecimento a seu mérito.

A primeira vez que vi falarem dele foi em entrevista de Bruno Tolentino nas páginas amarelas da Veja. O implacável avaliador lançou-o às alturas de maior nome da poética nacional desde João Cabral de Melo Neto. A fé em Bruno me levou a adquirir os livros de Alberto, todos editados no Recife, berço de Cabral e Bandeira, sem penetração no Sudeste.

O faro fino do editor Pedro Paulo de Sena Madureira, meu sócio na Girafa Editora, permitiu que a obra imensa e singular circulasse nas metrópoles a bordo de uma edição caprichada e magnífica de O Cão de Olhos Amarelos & Outros Poemas Inéditos. Os adjetivos usados descendem, mais do que do entusiasmo deste autor, da concessão do prêmio para o melhor livro de poesia dado pela Academia Brasileira de Letras em 2007. Debilitado, o poeta não foi à Casa de Machado de Assis recebê-lo e me honrou, como editor, pedindo para representá-lo.

Certa vez, Astier Basílio, precoce candidato a Arthur Rimbaud de Campina Grande (na comparação feita por Alberto e glosada por outro pernambucano, Jomard Muniz de Britto, que indagou quem seria, então, o Paul Verlaine da Borborema), pôs-me nas mãos um exemplar da edição artesanal de 200 exemplares numerados de Yacala, à beira do balcão do Café Aurora, na Praça da Bandeira, em Campina.

Exórdio, o primeiro dos 140 poemas reunidos, sacudiu minha alma como um vagalhão na tempestade: “Levamos fogo, não esponjas, / ao trono sujo de excremento, / disputando o mesmo vazio / de uma estrela no firmamento; // jarros negros e estrelas, tudo / é uma busca de conteúdo; // ou somos renúncia ou cobiça, / atravessamos esses planaltos / feitos de cinza movediça; // mas todos estamos em casa, / como os voos dentro das asas”.

A emoção desse rendez-vous do sórdido com o sublime se repetiu ao reunir-me a um grupo de atentos e devotos espectadores que lotaram o auditório da Livraria da Vila no lançamento paulistano da obra magna. Entre os presentes, Cláudia Cordeiro da Cunha Melo, professora de literatura, mulher, viúva, a mais completa e mais autorizada crítica (o que permitiu ao poeta conviver com a própria exegeta e permitirá ao estudioso acompanhar neste livro seu processo de criação); Martim Vasques da Cunha, herdeiro de Tolentino, autor do texto da orelha e timoneiro do projeto; e, last but not least, Carlos Andreazza, o bravo editor que trouxe a lume o monumento.

Melhor não teria a dizer sobre o livro que não seja o simples reconhecimento de que está à altura da obra que abriga pela fé, pela autenticidade, pela força, pela verdade, pela beleza e pelo compromisso ético com o que há de mais puro, cru e autêntico na arte maior. O cartapácio é o altar digno da obra que merece o mais alto posto no panteão da poesia em língua de Camões e Vieira.

José Nêumanne

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