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A elite brasileira é mais obscena que a desigualdade

O problema não é alguém ter um apartamento de 400 metros quadrados enquanto outro mora em um de 40. O que desconcerta é uma sociedade que acha normal um ter condições para desfrutar de um apê de 4 mil metros quadrados enquanto o outro apanha da polícia para manter seu barraco em uma ocupação de terreno, seja em São Bernardo do Campo, Itaquera, Grajaú, Osasco, Pinheirinho, Eldorados dos Carajás, onde for.

A Oxfam Brasil divulgou, nesta segunda (25), o relatório “A distância que nos une: Um Retrato das Desigualdades Brasileiras”. Por aqui, os seis maiores bilionários possuem a mesma riqueza e patrimônio do conjunto dos 100 milhões mais pobres.

E os 5% mais ricos detém a mesma renda que os demais 95%. E quem recebe um salário mínimo por mês levaria 19 anos para receber a média mensal de ganho do 0,1% mais rico.

Há o dobro de homens que recebem mais de 10 salários mínimos em comparação a mulheres. E há quatro vezes mais brancos que negros ganhando mais de 10 salários mínimos. Seguindo o ritmo de inclusão atual, as mulheres equipararão seus rendimentos aos homens em 2047. E os negros aos brancos em 2089.

No Brasil, os muitos ricos pagam proporcionalmente menos impostos do que classe média e os mais pobres, seja porque os dividendos que recebem como sócios de empresas não são tributados, seja por não haver progressividade nas alíquotas do imposto de renda e/ou por haver mais impostos sobre o consumo do que sobre a riqueza e o patrimônio.

As recomendações do relatório para reduzir esse quadro sinistro passam por uma Reforma Tributária com justiça social – o que teria sido mais importante para a qualidade de vida no país do que a Reforma Trabalhista, a Lei da Terceirização Ampla ou a PEC do Teto dos Gastos. Mas como morde o andar de cima, é algo tratado como doença morfética.

Bastou, no mês passado, a área econômica do governo federal assumir que estava estudando a hipótese de aumentar o Imposto de Renda sobre profissionais que ganham mais de R$ 20 mil por mês, criando uma nova alíquota de 35%, para que ocorresse uma enxurrada de críticas contra essa “abominação”.

O desespero maior, contudo, foi sobre outros estudos em curso, a respeito do retorno da taxação de dividendos recebidos de empresas por pessoas físicas.

A área econômica analisava algo em torno de 12 a 15%. O Brasil é um dos únicos países desenvolvidos ou em desenvolvimento em que isso não acontece, fazendo com que as camadas mais altas que vivem de lucros paguem, proporcionalmente, menos impostos que os mais pobres.

Quem reclama de bitributação não vê que o montante taxado hoje é pequeno em comparação ao resto do mundo.

A medida teria que vir casada com novas alíquotas do IR para evitar uma corrida à pejotização dos profissionais de mais alta renda. Tudo isso é um bom ponto de partida para um debate público.

A faixa de R$ 20 mil é muito baixa para uma alíquota de 35%?

Vejamos os números para discutir algo mais factível, como R$ 30 mil ou R$ 40 mil. O tema, porém, foi interditado sumariamente.

Ou seja, os mais ricos e seus representantes políticos enviaram um lembrete ao governo: a conta da crise econômica, conforme o combinado quando colocamos vocês aí, é para sair apenas do bolso dos mais pobres e não mexer em nossos privilégios.

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Enquanto isso, os parlamentares aprovaram, sem pudores, a PEC do Teto dos Gastos, que limita pelas próximas duas décadas investimentos em gastos, como educação, saúde, reduzindo a qualidade de vida da turma pobre que depende de serviços públicos – mudança constitucional duramente criticada no relatório da Oxfam Brasil.

Também aprovaram uma Lei da Terceirização Ampla, que deve precarizar o mercado de trabalho, e uma Reforma Trabalhista que retira proteção à saúde e à segurança dos mais vulneráveis.

E estão passando um rosário de leis que ferem a dignidade de populações indígenas, ribeirinhas, quilombolas, entre outros grupos.

Sem contar que o governo federal tenta ainda aprovar o aumento de 15 para 25 anos de contribuição mínima para se alcançar a aposentadoria, o que atinge diretamente os mais pobres.

Do outro lado, parlamentares atuam para manter subsídios bilionários a setores empresariais e preparam perdões multibilionários em juros e multas que deveriam ser pagos por devedores de impostos.

O Brasil continua sendo um grande Robin Hood às avessas: o sistema tira dos pobres para garantir aos ricos.

Enquanto um sócio de empresa recebe boa parte de sua renda de forma isenta, um metalúrgico e uma engenheira contratados via CLT são obrigados a bancar alíquotas de até 27,5% por salários que mal pagam um plano de saúde privado ou a escola particular dos filhos.

E um camelô ou uma trabalhadora empregada doméstica sem carteira deixam boa parte de sua pouca renda em impostos ao adquirir alimentos e roupas e usar transporte público.

Combater a desigualdade não resolve de vez os problemas, mas é uma ação fundamental para indicar o tipo de sociedade que gostaríamos de construir: um país que acredita na redução das distâncias entre ricos e pobres como pré-condição para o desenvolvimento coletivo ou um que tem um orgasmo toda vez que um bilionário brasileiro sobe um degrau no ranking de bilionários globais.

Como já disse aqui antes, entendo que este grande barco chamado Brasil seja um transatlântico de passageiros, com divisões de diferentes classes, com os mais ricos tendo mais conforto em suas cabines.

Não estou propondo uma revolução imediata para que cabines diferenciadas deixem de existir – apesar de ser uma maravilhosa utopia.

O ideal, pra já, seria que as cabines de terceira classe contassem com a garantia de um mínimo de dignidade e as de primeira classe pagassem passagem proporcional à sua renda. E que, ao contrário do Titanic, tenhamos botes salva-vidas para todos e não apenas aos mais ricos.

Na prática, contudo, seguimos sendo um navio que carrega escravos, com parte dos passageiros chicoteando a outra parte. Afinal, o Brasil ao invés de buscar medidas que amorteçam o sofrimento dos mais pobres, que são os que mais sentem uma crise econômica, tenta preservar os mais ricos e as associações empresariais que trocam governos e elegem representantes.

*Leonardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência Política pela USP

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