Enquanto Lula ocupa a presidência pela terceira vez, após a mais apertada campanha eleitoral em décadas de História, não custa lembrar que o país permanece em plena travessia institucional.
Neste ambiente, inevitavelmente tumultuado, irá ocorrer uma primeira definição importante, após a vitória que impediu a reeleição de Jair Bolsonaro — a escolha do novo Procurador Geral da República, posto estratégico na cúpula do Estado, ainda mais na conjuntura atual.
Como já é tradição, os procuradores definiram uma lista tríplice de concorrentes ao posto, oferecida como sugestão ao presidente Lula, que tem o direito à palavra final, inclusive anunciando um novo um nome fora da lista do MP.
Há outro candidato no horizonte, contudo.
Só para recordar: o primeiro mandato de Augusto Aras como PGR foi iniciado em setembro de 2019. Indicado por Bolsonaro, tomou posse num ambiente marcado pelos dois episódios decisivos do retrocesso brasileiro mais recente — a prisão de Lula, em abril de 2018, e a derrota de Haddad, meses depois.
Essa postura alimentou o golpe contra Dilma Rousseff e os ataques à Petrobras, mostrando que os adversários da presidente do PT tinham fôlego, dentro do Ministério Público, para indicar um novo PGR.
Seu nome era Nicolau Dino, irmão mais novo de Flávio Dino, o ministro da Justiça de Lula. Primeiro colocado na escolha interna, com 651 votos, ele não sobreviveu até a chegada do novo governo, contudo. Michel Temer optou por Raquel Dodge, que Bolsonaro iria trocar por Augusto Aras.
Embora sua campanha contasse com o patrocínio declarado de Jair Bolsonaro & filhos, além de estrelas do primeiro escalão do Congresso, nunca faltaram vozes amigas no Ministério Público com disposição para retocar a imagem do candidato, espalhando a noção de que o punitivismo de Aras seria apenas teatro eleitoral, que seria substituído por sólidos princípios garantistas quando o candidato a PGR já estivesse firme no cargo e pudesse demonstrar sua vocação democrática.
Como o país pode constatar nos anos seguintes, o Aras da vida real nada tinha a ver com essa fantasia ingênua e/ou interesseira.
Em vez de manter uma postura vigilante diante dos abusos cometidos pelo governo Bolsonaro, atitude que constitui obrigação número 1 da função, o PGR cultivou uma indisfarçável capacidade de adaptação aos gestos e atitudes de um governo que tentava encaminhar o país para uma ditadura.
O mal-estar contra sua atuação atingiu tal ponto que em agosto de 2021 quatro lideranças históricas do Ministério Público sentiram-se no dever de abandonar o descanso para tomar uma atitude inédita, cuja gravidade os estudiosos dos meios jurídicos do país conseguem avaliar com mais precisão.
Enviaram ofício ao Conselho Superior do MP para acusar o PGR de “não cumprir a missão constitucional” em casos de óbvio interesse nacional.
Aras foi acusado de “omissão” diante da atuação de personalidades notórias como ex-ministro Ricardo Salles e o primogênito Flavio Bolsonaro. Os procuravam fizaram acusação pior.
Escreveram que o PGR “por si próprio ou por intermédio de pessoa de sua mais estrita confiança, vem, sistematicamente, deixando de praticar, ou retardando, a prática de atos funcionais para favorecer a pessoa do presidente da República ou pessoas do seu entorno”.
Sua omissão na tragédia de 700 000 mortos na covid-19 também foi lembrada com pesar.
Pelo histórico, resta perguntar se o perfil de Augusto Aras se encaixa na conjuntura de um país que procura reconstruir o regime democrático. O PGR tem a prerrogativa única de investigar políticos com foro especial — a começar pelo presidente da República.
Também é o único membro do Ministério Público que pode iniciar ações penais contra senadores e deputados federais, além de ministros e, mais uma vez, o presidente da República.
Resumindo: para o bem ou para o mal, o PGR é um personagem destinado a se mover no olho dos furacões — jurídicos, políticos, econômicos — que costumam explodir cotidianamente na República.
Diante de um histórico conhecido, um Presidente da República comprometido com o Estado Democrático de Direito não tem nenhum interesse em entregar tamanho poder a Augusto Aras.
Alguma dúvida?
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