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Morre o Escritor e professor Raul Fiker

Poeta e professor Raul Fiker (d), em evento em setembro de 2017, na Tapera Taperá, no centro de SP Foto: Gabriel Rath Kolyniak/Tapera Taperá

Na antevéspera de Natal, o poeta surrealista Raul Fiker entrou no elevador de seu edifício, no bairro das Perdizes, e só encontrou o fosso. O desencontro pôs fim à sua trajetória, com um único livro de poemas publicado: O Equivocrata. Lançado em 1976 porMassao Ohno, a coletânea de textos em prosa juntava-se a outros volumes fundamentais do surrealismo paulistano, lançados pelo mesmo editor, como Paranoia (1963), de Roberto Piva, e Anotações para um Apocalipse (1964), de Claudio Willer.

Em setembro último, o jovem editor Gabriel Kolyniak, da Córrego – responsável pela Biblioteca Roberto Piva – relançara o volume dos poemas de Fiker, então professor titular de filosofia da Unesp. A bela edição traz textos que ficaram de fora da primeira edição, um agudo prefácio de Claudio Willer e as imagens oníricas da artista plástica Maninha Cavalcante, responsável por aproximar Fiker de seu editor primeiro.

Entre o saber científico do docente aposentado e o saber analógico do poeta, vão-se 41 anos. A reedição, necessária e bem mais que bissexta, resgata o surrealista Fiker e tranforma O Equivocrata na obra que emoldura sua escrita e sua existência. Literatura e vida se conjugam numa linha do livro: “Foi dentro daquele elevador que ele sempre esteve e ali passará o resto de seus dias.” (p. 76). Nada mais equivocado e, portanto, nada mais certo. “Só há causa naquilo que falha”, dizia o psicanalista e surrealista francês Jacques Lacan, em seu seminário de 1964.

Quando André Breton e os jovens médicos e poetas franceses procuraram por Freud, em meados dos anos vinte, buscavam no vienense uma chancela para seus experimentos com a escrita automática e o inconsciente, donde acreditavam ter topado com um saber ancestral. Preguntava-se Breton a certa altura de seu Manifesto Surrealista, de 1924: “Quando teremos lógicos e filósofos dormentes?”. Freud, apreciador de literatura e arte clássicas, esquivou-se dos iconoclastas. Lacan, por outro lado, conjugou o rigor freudiano e o saber da literatura, colocando-a no centro de sua práxis: “Só há causa naquilo que falha”.

Pois a trajetória do brasileiro Raul Fiker está intimamente ligada aos preceitos de Breton. Desde sua participação na Primeira Mostra Surrealista de São Paulo, em 1967, com a exposição de trabalhos seus ao lado de obras do próprio Breton, de Duchamp, Magritte, Miró, Arp e Paz até, claro, seu livro de poemas em prosa –  lançado na provocativa Feira Paulista de Literatura e Arte, em 1976, no Teatro Municipal, em plena ditadura –  há escolhas e posturas humanas, mais que apenas estéticas.

Assim é que Fiker leva ao limite algo que se lê nos surrealistas e em Lacan e funda, nas páginas de seu livro, uma equivocracia, o domínio da equivocidade, e irá sustentar, na escrita literária, a falta de sentido e propor uma realidade falhada. Há momentos em que há sucessão de imagens, alinhavada por um sutil vocativo e uma mera pseudo-explicação: “Senhora, armadilha suave que estraçalha todas as células, delírio de semana passada, marca amorosa na superfície do planeta, última instância do mal-entendido, esconderijo com mil cabines individuais, sua covardia não tem peça de encaixe, é contemporânea” (p. 25). Noutros trechos, o delírio dá lugar ao absurdo, produzindo fragmentos irônicos que atacam em cheio um mundo que ainda é o nosso, como na singela descrição da prisão: “(Há um contrato. Na prisão você entrega seu espaço e recebe tempo em troca. Como prisioneiro, ao receber sua ração de sol, você pode observar as sentinelas nos muros, presas também, aos uniformes, ao salários de terror e à bestialidade da responsabilidade do dinheiro)” (p. 20). Há ainda uma série de pequenos contos muito bem realizados, como “1969 & A conquista da Lua”, em que se narra a chegada do homem à lua em paralelo à pesca de um bagre. Destaque-se também “Hábito”, em que se conta o encontro cheio de consequências do narrador com um rato na Biblioteca Municipal.

Assim, há que se considerar que, embora haja exemplos acabados de pequenos poemas ou narrativas coesas, O Equivocrata é uma obra que se lê melhor de modo fragmentário, pescando-se frases singulares, das quais a atribuição do sentido caberá ao leitor: “Quebrar tudo ou não tocar em nada” (p. 26), “Escolher uma posição do caleidoscópio e lutar por ela até a morte” (p. 26). Um livro que se pode ler, como um lance de dados, num mundo para o qual, nas palavras do poeta,  impera “A contingência, e não o trágico” (p. 63).

De tal modo também pode ser lida a pequena hagiografia de São Simeão Estilita, encerrado em seu elevador, não como uma antecipação funesta do desaparecimento do escritor, mas como um lance a mais do jogo: “Desta forma, o santo dá início à sua obra: uma imensa coluna – isto os impressionará sobremaneira, e também ao santo – no topo da qual ele se instalará após a árdua construção. Árdua, porque os materiais usados na empreitada consistem em fragmentos do elevador e dele. São Simeão Estilita” (p. 78). O poeta pode sim escrever-se na juventude para, nos dias finais, confirmar seus votos. Como dizia o chileno Vicente Huidobro, “o poeta é um pequeno deus”.

*Wilson Alves-Bezerra é poeta e professor de Letras da UFSCar

Wilson Alves-Bezerra, Especial para O Estado de S. Paulo

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